Não se pode

158 9 3
                                    

Teresina, década de 20.

As lágrimas escorriam como rios fortes pelas bochechas cheias de maquiagem e caiam manchando o vestido branco. A igreja já apagava as luzes atrás da bela moça vestida de noiva, e algumas gotas de chuva começavam a cair do céu.

Ela enxugou as últimas lágrimas derramadas por alguém que não merecia. Levantou da escada e pensou para onde iria. Já não tinha mais lugar pra voltar. Havia abandonado tudo. Família, amigos, passado. Tudo por um homem que nem sequer apareceu pra dar uma explicação. Dizer que não a amava de verdade. Que não queria casar com ela.

Não, ele esperou ela fugir de casa com o vestido de noiva da mãe na mala para esperar ele por horas na igreja até que o próprio padre pedisse que ela se retirasse. Agora ela não tinha sequer coragem de voltar para casa dos pais, onde receberia do seu pai, como presente de boas vindas, a maior surra que um ser humano já levou.

Preferiu perambular pelas ruas pintadas de amarelo pelas luzes dos lampiões. O céu estava fechado, alertando a tempestade que se aproximava e ela achou que o clima combinava perfeitamente com o momento.

A cada esquina, sem hesitar, ela atravessava sem se importar com quem pudesse estar passado. Passou por muitas pessoas, mas sem que percebesse seus pés a levaram na direção das ruas mais vazias, onde reinavam a vida obscura da cidade. Lá, onde se concentravam os prostíbulos, homens passavam sozinhos ou em pequenos grupos e a olhavam em sua marcha sem destino com desconfiança e desejo.

Observou um homem que passava por ela fumando despreocupadamente um cigarro. De repente ocorreu-lhe que nunca havia fumado. Decidiu que queria experimentar. As pessoas pareciam tão mais seguras de si segurando um longo cigarro entre os dedos. Tão fortes e destemidas.

- O senhor teria um cigarro para me emprestar?

O homem pareceu surpreso com a visão da noiva abandonada e sem dizer nenhuma palavra puxou um cigarro do bolso e lhe entregou. Depois de muito olha-la resolveu perguntar:

- Qual seu nome?

- Será que ninguém pode pedir algo sem que se exija algo em troca? - falou ela e virou as costas, seguindo pela rua amarela sem olhar para trás.

Depois de estar longe ela puxou fora sua tiara e véu, jogando em um lugar qualquer, segurou o cigarro entre os dedos assim como fazem as pessoas seguras de si e pôs na boca. Só ai que se deu conta que não estava aceso.

Jogou o cigarro inútil fora e continuou sua caminhada. Alguns metros depois encostou em uma árvore próxima a um poste pensando em tirar o sapato de salto que estava lhe machucando os pés. Foi ai que avistou outro homem elegante se aproximando.

Quando ele estava próximo o suficiente lhe perguntou se tinha um cigarro. Esse homem era bem mais falante que anterior.

- O que faz uma mossa tão bonita sozinha na rua a essa hora da noite? - Ele não pareceu perceber que seu vestido era o de uma noiva.

- Estou procurando quem me dê um cigarro - respondeu, tentando parecer cheia de si.

- Pois não precisa mais procurar. Eu lhe ofereço um dos meus - puxou do bolso um maço de cigarros e lhe ofereceu um. - Mas qual nome teria tão bela visão?

Ela segurou o cigarro entre os dedos enquanto ele puxava os fósforos de outro bolso.

- Não se pode... - começou a dizer.

Nesse momento um raio caiu na árvore sob a qual ela se encontrava. Um galho enorme se desprendeu e em sua queda derrubou o poste abaixo. O poste por sua vez caiu na direção da noiva, acertando em cheio sua chama no peito da moça.

Presa sob o pesado poste, o sangue tingia seu vestido de vermelho enquanto as chamas a consumiram. Seus gritos ecoaram por todas as ruas próximas e o elegante cavalheiro nada pode fazer, a não ser buscar ajuda que jamais chegaria a tempo.

Por algum motivo que ninguém soube explicar ela não largou o cigarro em nenhum momento.

Nota:

No Piauí, mais especificamente na sua capital Teresina, existe a lenda de uma mulher de branco que se aproxima dos homens, pedindo cigarro, mas quando eles oferecem fogo, ela simplesmente cresce até o tamanho de um poste para acender o cigarro nas chamas do lampião, que era como os postes eram iluminados antes da eletricidade.

Essa mulher, conhecida como "Num Se Pode", nunca teve uma origem conhecida. Esse conto proem uma origem para esse personagem folclórico.


Não se podeOnde histórias criam vida. Descubra agora