Guerra - A Dúvida

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Etília, A Paciente, no auge de seus trinta e três não concluídos anos, já sentia a idade lhe pesar. O fardo de três primaveras sem nenhuma notícia do seu amado começara a enraizar sérias dúvidas... Aquele anel em seu dedo deveria ali continuar? Afinal, de que adianta amar em tempos tempestuosos, onde nenhuma vida frutifica por entre as cinzas? A indiferença perante o seu próprio desespero gerava-lhe uma grande culpa, percebida com distanciamento. Definitivamente, ela já não era a mesma.... Estava cansada daquilo e ninguém poderia culpá-la por isto.

Era mais uma manhã naquela pequena região rural, onde aviões cheios de tragédias sobrevoavam os campos e uma névoa de estatísticas pairava sob o seu rádio. Para ela, cada baixa era o seu próprio marido, do qual o rosto já não lembrava mais. E quantas milhares de vezes ele morrera em seu coração, junto a todos os soldados dos quais tinha notícia? Mas o céu estava aparente e decidiu por caminhar.

Com o seu longo vestido azul e chapéu trançado aventurou-se a "mais do mesmo". Pegou a sua bolsa, que havia preparado na noite anterior, e saiu rumo ao mirante local. No trajeto, avistando os velhos olhares das velhas senhoras nas varandas, percebeu que já não se interessava por decifrar o que sussurravam entre si. A pena e compaixão, na visão de Etília, era apenas um artifício para se sentirem melhores e mais humanas diante do triste cenário mundial. Tudo era egoísmo... E se ela, por motivo de sua infelicidade, fosse o instrumento necessário para gerar mais empatia a este povo - "que seja", balbuciou - valeria o sacrifício. Levantou a cabeça e firmou os seus passos em direção à sua rotina, além dos portões da cidade. Mas hoje seria diferente: Ela havia decidido.

Chegando no seu destino, ajoelhou-se perante a imensidão do mar. O vento soprava-lhe carinhosamente, embalando a grama e abençoando todo o seu redor. Toda aquela ternura era arrebatadora. Por entre as flores daquele monte, e abaixo, Etília chorou. A dor acendeu suas lembranças... Era o mesmo lugar do seu primeiro beijo... E como poderia ter esquecido? Clamou em seu nome baixinho e falou com todo o seu coração:

"Senhor Deus... Porque reservaste tal discórdia? Ainda ontem perto de tí, porque me distanciaste?! Seria injusto caber em mim a alegria dos inocentes?"

Abaixo daquele morro, enquanto fitava lágrimas na ponta do seu branco nariz, percebeu que crianças brincavam... Pôs-se a chorar mais ainda:

"Pai... Estava grávida e tiraste de meu ventre a alegria de viver. Com aquele feto nos braços, entendi que seus planos eram maiores que o meu infortúnio e segui em frente... Mas, como se não fosse o bastante, o senhor enviou a minha outra metade para além-mar... E aqui o meu peito descansa vazio! Seria injusto pedir-lhe a capacidade de receber mais uma carta?! Há três anos, meu pai... Meu bom senhor... Há três anos nunca Lhe pedi por mais uma chance pois ainda tinha esperanças e alguma fé em Ti... Mas Sua voz hoje é o silêncio... Creio já não olhar por mim. Então, está decidido, meu Deus... Hoje eu vim aqui para sepultar o meu amor."

Tremule, repousou a bolsa sobre o seu colo. Sem que antes molhasse com mais lágrimas o linho, retirou de lá uma cruz calcada em estaca, talhada pelas suas finas mãos. O nome, de tão forte pronúncia, estava talhado na madeira.

"Eu esperei, senhor... Vós sabeis, não é perjúrio... Não é descaso com o meu comprometimento! Por tempos aguardei-o, as vezes até esperando na cama, imaginando a sua chegada, fazendo o seu café e repousando-o na mesa até esfriar. Até o dia seguinte sentir as mágoas da minha rotina! A minha paz virou sombra e meu coração esmaeceu em pó. Não consigo continuar assim... Devo renascer. Não consigo ter a paciência de Penélope... Não consigo tecer sudários durante o dia e desmanchá-los à noite, Pai... Entrego-Lhe a certeza de que o meu marido morreu."

Ainda em prantos, fixou o olhar nas crianças... Não pareciam estar em guerra. E era essa mesma liberdade que ela queria, que ela precisava. Acima, o voo das gaivotas à beira-mar... Lembrou-se de quando era uma criança, galopando em seu cavalo naquela mesma praia. Por mais paradoxal que fosse, enquanto sepultava o seu amor pôde sentir a quebra das correntes... E isto a alegrava. "Talvez eu não o amasse tanto quanto deveria... Sinto que é assim que tem de ser", pensou. E mesmo que estivesse vivo - "certeza que não" – mas, ainda assim... Mesmo que estivesse vivo... Mereceria coisa melhor.

Cruz cravada, colocou sob um punhado de terra aquele anel, simbolizando o infinito que encontrara o seu fim. "Nunca deveria ter dito sim... Eu sei, o amava com todo o meu ser e fui feliz... Mas não deveria. Não é certo morrer aos poucos por causa do Amor."

Prostrou-se em silenciosa oração, pedindo a Deus que a perdoasse pelos seus feitos. Enxugou o rosto e olhou para o mar... Já não ventava. Levantou e seguiu em frente. Uma nova Etília nascia alí... Logo depois de morrer.

Enquanto descia o morro chegou a lógica conclusão que deveria ter feito aquilo antes... Muito antes... Meses após as cartas terem parado de chegar. Três anos era tempo demais... E quantos pretendentes ela teria perdido? Por sorte, lembrou do seu vizinho, Joaquim. Rapaz tão bondoso - apesar de jovem - mas ainda na flor da idade... Para os outros, Etília pouco envelhecia, mas ela sentia que as rugas da preocupação já ameaçavam o seu semblante. Ainda assim, Joaquim a queria... Por isto ela sorriu.

Já avistando os portões da cidade, arrumaria toda a sua casa.... Seus passos eram como se adentrasse em um novo futuro. Típico de sua personalidade - e ela já havia se acostumado com isto - estava em dúvida se guardaria ou queimaria as coisas do seu falecido marido. Um ronco rompe o ambiente e, atenta aos portões, percebe provavelmente aquele que era o carro da floricultura saindo da vila... Joaquim estava presente para o seu horário de almoço. Mais uma vez, sorriu. Iria ele trazer mais flores?

Caminhando em direção ao seu lar, lembrou-se de como era despir-se lentamente de suas vergonhas em frente a alguém... Havia pelo menos cinco anos que se acostumara ao descostume. Há muito não se sentia mulher... "Não anseio por isto", pensou, "mas algo dentro de mim está, mais uma vez, quente."

Chegando em frente aquela casinha de madeira, parou por um segundo, preparou o seu espírito para entrar no mesmo ambiente de sempre, pronta para arejar-se... E viu a porta entreaberta. Joaquim, teimando em sua insistência, provavelmente estava lá deixando mais um buquê de flores escondido... Dessa vez ela não evitaria e aguardaria a sua saída como uma mulher despercebida de suas intenções. Ela estava, mais uma vez, viva e pronta para viver... Sorriu um sorriso que há anos não sorria, sorrateiro, carregado de uma certa juventude e malícia digna dos adolescentes. Abriu a porta e entrou.

A sala estava vazia. Olhou atrás da porta, Joaquim não estava lá... Mas também, "ele não é homem de se esconder", pensou. Certamente o rapaz estava na cozinha, sendo o único cômodo térreo que restara. Andou por mais poucos passos, passando perto da escada que levaria até o seu quarto e a inesquecível imagem foi se formando aos poucos... O sol que, pela fina cortina entrava, revelou a xícara de café que repousava perto da ponta daquela pequena mesa circular, no centro de sua cozinha... Lar de tantas boas lembranças das suas antigas manhãs. Sentiu uma pequena pontada no coração por, em meio aos seus devaneios, ainda ter feito o café para o fantasma de seu marido naquele mesmo dia. Imóvel por poucos segundos, logo recuperou-se, pois nada iria frear aquela nova energia... Por Joaquim, alertou-se, e estava renovada. Um vento soprou entre os seus cabelos, a fazendo perceber que provavelmente a janela estava aberta. Deu mais alguns passos e, ali, em frente a sua antiga mesinha... Uma figura de homem olhava as colinas, debruçado em sua esquadria. Etília percebeu... O café estava bebido. O homem se virou.

"Meu bem..."

Havia um casaco de exército na cadeira... A qual estranhamente se aproximava dela.

Tempo de AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora