O Ministério da Guerra lembrou-se da existência de Narciso. Foi o que logo imaginou quando viu o timbre oficial do envelope, um telegrama, em papel pardo e cheirando burocracia, que o carteiro lhe estendia. Ele tinha um leve sorriso nos rosto que Narciso estranhava.
O carteiro lhe estendeu uma prancheta, com uma longa lista de nomes, protocolando que o próprio e não outro recebera a comunicação em mãos.
Narciso rapidamente espiou os outros nomes, teria algum conhecido, um vizinho, um parente? Não identificou nenhum. Viu um longo rol de nomes masculinos e ao lado assinaturas e letras femininas, tirando uma ou outra misteriosa rubrica e vários espaços em branco. "Estão fugindo da guerra?", pensou. Narciso seria o primeiro a pôr sua assinatura ao lado de seu nome.
Pegou sua própria caneta, tinteiro, francesa (ou inglesa) e firmou a lista na linha reservada destinada a seu nome, quase invadindo a linha de baixo e a linha de cima com sua assinatura de contador, rebuscada, floreada, difícil de falsificar, como exigia sua profissão. E ao devolver a prancheta o carteiro puxou de sua bolsa um livrinho, esverdeado, de papel jornal, e o entregou a Narciso, despedindo-se para ir convocar outros homens na vizinhança.
Com a carta e o panfletinho em mãos, Narciso voltou para seu trabalho. E logo que sentou sem sua escrivaninha, Deja apareceu na porta:
"O que era?"
"Hitler se lembrou de mim..."
"Mas o que..." e ele lhe alcançou o telegrama.
Ao ver as pesadas letras do ministério e o brasão de armas do Brasil estampados, logo entendeu a situação sem mesmo abrir a correspondência, tal como o marido. Deja não suportou o resultado daquela combinação, a notícia da convocação e a ironia de mau gosto emoldurada pelo fino bigode de Narciso. Sentiu como se alguém tivesse puxado sua chave-geral, um desrespeito com sua angustia que cultivava e domava a meses.
Seu marido vai à guerra. E não queria transparecer seu desespero sobre isso.
"Não brinque com essas coisas..." séria, de voz firme, pois o sague dos Guimarães corre nela e por isso deve sempre mostrar-se forte e resiliente.
Narciso se limitou a piscar várias vezes, sem esboçar nenhuma opinião. Viu Deja dilacerar o envelope e ler todo o conteúdo em sua frente.
Convencida, passou-o para Narciso, que leu calmamente, linha por linha a convocação, que era breve e clara em suas informações: Que ele fora convocado; que devia aparecer em dia tal e hora tal em tal quartel; e que já levasse sua documentação e uma pequena bagagem; e a carta terminava com uma leve ameaça: aqueles que não comparecessem riscavam de ser processados e/ou presos, enquadrados numa lei extraordinária de Getúlio.
Terminada a leitura, percebeu que Deja não estava mais na sala. Foi chorar em outro lugar, pois um Guimarães não desaba na frente de outro, e ele sabia disso. Ia retomar o trabalho, viu o panfleto jogado ao lado. Pegou-o, admirou a capa, um combatente em estilo decò, e as inscrições: Força Expedicionária Brasileira – Canção do Expedicionário.
Levantou uma sobrancelha e começou a folhear o panfleto: Mistura de boas-vindas com "serás um herói, defenderá o Brasil e seus interesses, blá, blá, blá", além da letra da tal canção com a partitura da música na última página. No colofão, o Ministério da Guerra dizia que era uma honra tê-lo em sua corporação.
Narciso leu essa última frase quase que como uma ofensa. Mesmo assim respeitou a autoridade do texto. Agora sua função era decorar a canção do expedicionário. Tinha uma semana para se apresentar, devia correr com os preparativos, as despedidas...
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Você sabe de onde eu venho?
Historical FictionNarciso vai à guerra mas sua maior batalha é com uma música