Capítulo único

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Era uma manhã fria no norte de Londres. A bebida quente, servida à mesa de um Coffee — que ficava em uma esquina muito popular, de frente para a praça principal — cheirava e esfumaçava. Erick tinha uma linda vista à sua frente, embora houvesse um grande carvalho do outro lado da rua que, por sua robustez, desconstruía a calçada e roubava a atenção de quem passava por ali. Seus galhos eram compridos e curvos, mas Erick não reparou com muita atenção; estava apreensivo. A fumaça ainda saía do café na louça chique, como também o ar quente de sua boca e nariz enquanto respirava.


Era Samantha quem ele aguardava ansioso, um tanto desconcertado e distraído. Uma manhã perfeita. O sol brilhava com intensidade, embora estivesse frio demais para tirar as mãos dos bolsos. Já passava das 9h30, mas a mulher encantadora, por quem Erick aguardava, ainda não havia aparecido, e, à medida que o tempo passava, ele ficava mais ansioso — no bom sentido, claro. Era para ela chegar às 9h20, mas provavelmente algo a atrasou. É o que, talvez, ele pensava, um pouco tenso e ligeiramente sorridente. — Garçonete! — exclamou Erick — Por favor, outro café, exatamente como este.Atenciosa, a moça o atendeu.


Ele tinha muitas expectativas a respeito de Samantha. Embora ela tivesse dois ou três anos a mais que ele, ambos eram jovens. Ela era tão doce e marcante que ele apaixonou-se rápido, e, de certo, sua paixão era bem correspondida. Ele pensava nunca ter vivido algo assim, e ela, Samantha, também se sentia da mesma maneira. Conheceram-se durante um voo, onde os assentos ladeados ofertaram uma circunstância que viabilizou essa paixão da mocidade.


Samantha era bela. Tinha um ar intelectual, sereno e cativante. Seria difícil para qualquer homem não a considerar atraente, mas Erick era o portador da sorte de estar sob os enlaces dessa graciosidade. Sorria bobo diante da expectativa de sentir logo o perfume dela, torcia para tudo ser perfeito e os conduzir a dar um bom passo no relacionamento. Mesmo que nunca a tivesse tocado — sequer a beijado — o que ambos sentiam um pelo outro era indiscutível. Não era de se imaginar que aquele moço, aparentemente tão ensimesmado no assento do avião, iniciaria um diálogo que o levaria a algo tão profundo e inesperado. Bendita hora em que sua caneta caiu do bolso do blazer de linho e parou nos pés daquela dama de vestido clássico e minimalista.


Depois daquele voo, foram semanas conversando e fortalecendo o que lhes era romântico, recíproco e promissor. Não sei se Erick ouviu tudo o que precisava dela, mas ela ouviu muitas coisas dele e, com certeza, disse muitas outras. Ambos estavam tão apaixonados que não conseguiam explicar a magia daquilo tudo e, agora, esse plebeu tímido se via sentado num café-bar e levava consigo sua esperança, seu coração, uma aliança acompanhada de um belo buquê e o clichê romântico como proposta de pano de fundo. Mas, por enquanto, era só um café chique às 9h50 de uma manhã fabulosa, iluminada e fria.


Samantha morava a dez minutos dali, ainda em North West. Romântica e amante da liberdade, talvez ela estivesse indo pedalando e se distraiu com as borboletas, que beijam as milhares de urzes lilases que forram a colina perto dali. Mas Erick já estava no segundo café, e Samantha já estava trinta minutos atrasada. Ele resolveu ligar.


Depois de tocar algumas vezes, enfim, a chamada foi atendida. Enquanto Erick era gentil, cumprimentando a dama e perguntando sobre ela, um homem de meia idade se aproximou e o cumprimentou antes que Samantha respondesse ao telefone. Erick se distraiu com o homem, o cumprimentou de volta, pediu licença um instante por estar numa ligação e tornou a falar ao telefone. Logo, percebeu que ela não respondia do outro lado.  Erick desligou meio confuso, enquanto, à sua frente, o homem alto, maduro, de cabelos rubros e olhos grandes, disse:— Eu só queria ter certeza de que era você.


Sem entender nada, Erick perguntou, enquanto tentava ligar outra vez para Samantha: — Desculpe, não entendi. Quem é o senhor? — Você já vai descobrir — disse o homem de voz firme, sem pressa e com os olhos fixos em Erick. — Não precisa ligar de novo, rapaz. Sem dúvidas, ela não vai aparecer mais.De longe dava para perceber, no semblante de Erick, que ele devia estar se perguntando quem era aquele homem e por qual razão ele tinha tanta certeza de que Samantha não iria aparecer. O homem sentou-se de frente para Erick e disse, pausadamente: — Só um milagre poderia tirar você desta mesa, meu rapaz.


Deu para notar, nitidamente, quando Erick caiu em si. Num choque de realidade, a sua feição desfaleceu. Estava pálido; provavelmente suava frio com a ilustração fatal de que, aquele homem, era marido de Samantha. Por alguns minutos, ele fez do olhar apático de Erick o seu palco, e, à toa, declamou suas faltas, e culpava Erick e Samantha. Como numa entrevista com o diabo, Erick ouvia suas vozes interiores o tratarem com mais severidade que o marido desprezível de Samantha. Tão parvo desvairado, Erick sentia-se perturbado e enojado. E, tão pouco nobre, sentia-se um amante alucinado.


Sou um velho bobo ao permitir essa lágrima correr no meu rosto cansado, depois de ter vivido e assistido o amor por tanto tempo. Mas, talvez, eu possa falar. Não penso ser tão simples quanto falar de amor por café; entretanto, cheguei a pensar que, se Erick tivesse tomado um café comigo, teria enfrentado o trânsito congestionado e, ao perder a hora, não teria tomado aquele voo. Quem sabe se não usasse um blazer de linho na ocasião, não tivesse permitido cair a caneta do bolso, nem conhecido Samantha, nem se apaixonado, ou se ao menos não estivesse à espera dela naquela manhã, talvez ainda estivesse aqui comigo, o seu velho amigo. Mas o marido de Samantha disse, numa mistura confusa de sutileza e hostilidade: — Agora, a gente vai fazer uma viagem longa, rapaz.E, num frenesi, usou o revólver, que estava na parte de trás da cintura, disparando contra o peito de Erick, duas vezes. Foi alvoroço e, em seguida, silêncio, interrompido apenas pelo som da garoa que respingava ao soprar do vento, umedecendo as folhas do grande carvalho. Manchas como a escarlate se destacavam sobre o tecido branco da arrumação das mesas em volta, como uma pintura tenebrosa e abstrata numa tela em branco; e, em pouco tempo, perdiam o seu tom, ficando amarronzadas.


Aos meus setenta e dois anos, meu único amigo me deixou mais rápido do que pude contar sobre o amor. Tornei a estar só, e, agora, com meu chapéu, a bengala e meus "sapatos conservadores" — como Erick ironizava — estou na mesma praça onde o vi da última vez, meses atrás. E, enquanto tomo esse café sozinho, angustiado pela lembrança fatídica, faço-me pouquíssimas perguntas, depois de todas as que eu já pude fazer.


Tão honesto e inteligente, o que tanto lhe embaçou a visão? Por que Erick não percebeu nada diante dos seus olhos? E Samantha, por que não revelou nada? E será que lhe fugiu a verdade sobre seu relacionamento, antes de optar por se casar com aquele homem ruim? Qual foi a verdade que o marido daquela mulher escolheu acreditar? Homem sem brilho no rosto, trem descarrilado. Ao invés de luz no fim do túnel, seu casamento era um vagalume nas trevas do caminho para o inferno sempre existente dentro dele. E que verdade os três escolheram acreditar, se havia uma só verdade? A verdade ignorada.


Nessa reflexão, e na saudade do meu amigo leal, fiel companheiro de café, não me sinto mais sábio que ele. Sinto-me apenas um menino diante das verdades do amor não enxergadas nesse custoso e infeliz episódio.

Café escarlateOnde histórias criam vida. Descubra agora