Hospício

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São 9 horas da manhã e estou aqui, sentada em uma cadeira, ouvindo um velho dizer vários termos e explicações que eu certamente nunca irei usar, além de ser um elitista que adora dizer que estamos no caminho inverso do capitalismo. E eu não discordo, porque é isso mesmo que eu estou fazendo.
A faculdade é só um fardo que tenho que carregar para não causar mais distúrbios na família.
E o que eu estou fazendo aqui, então? Você deve estar se perguntando, já que sou uma possível jovenzinha rebelde. Mas eu não sou.

"Ni.." - uma das pessoas que convivo no dia a dia, Jade, sussurra para mim e interrompe meus devaneios.

"Oi, pode dizer, preciosa" - respondo, brincando com o nome dela.

Em meio a uma risadinha abafada, ela diz: "Vamos sair daqui e comer alguna coisa? Estou faminta"

Só aceno com a cabeça e já vou pegando minha mochila, que nem cheguei a abrir.

"Vou passar no meu armário para pegar umas coisas, mas pode ir para o carro, te encontro lá" - digo para ela ir andando na frente e não correr o risco de que ela veja o que estou indo buscar e não ter uma noção distorcida de quem eu sou, porque ela infelizmente não entenderia..

Vou a caminho do armário, pego algumas cordas que estavam nele e, quando estou prestes a fechá-lo, o ser mais insuportável aparece.

"Curte um lance mais sadomasoquista?" - fala olhando para as cordas em minha mão

Eu apenas as guardo, reviro meus olhos e caminho em direção ao carro. Porém, na minha mente, a corda está enrolada no pescoço dele e eu estou arrastando o babaca pelo corredor.

"Nienna, espera um pouco. Tava só brincando! Meu pai pediu para entregar isso a você, mas é para sua mãe. Não sei o que é, então nem pergunte"

Ele me entrega uma pasta com um grande lacre, sem nada escrito. E eu me pergunto o que diabos isso poderia ser. E é claro que eu vou abrir antes.

"Ok, até mais, Marco" - falo com certa rispidez, mas nada fora do comum.
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"... Ni? Nienna? Tá me ouvindo?" - começo a escutar a voz da Jade, enquanto estava com a cabeça em outros milhares de lugares

Pedi desculpas e passei o resto da hora ouvindo a moça de cabelos com ondas perfeitas, olhos escuros, mas com um brilho fascinante, falar sobre todos os seus problemas ou simplesmente falar das novidades de sua semana.

Depois, me despeço dela, que me retribui com um abraço e um sorriso em seu rosto. 

Enquanto caminho para o ponto de ônibus, lembro da pasta que Marco me entregou. E em questão de segundos, minha mãe me liga, justamente para isso:

"Filha, tudo bem? O Félix deixou uma pasta para o Marco te entregar, está com ela?"

Por um rápido segundo, penso em qual vai ser minha estratégia.
"Sim, está comigo, mãe" - se eu dissesse que não estava, ela poderia ligar para o pai do Marco e perguntar 

"Ótimo. Não abra, ok? Estou confiando em você."

"Por que confia tanto em mim e ainda assim não me deixa saber o que tem nela?"

"Filha... são problemas que não quero te envolver, tá bem?"

"Certo. Ainda estou na aula, vou chegar um pouco mais tarde, as meninas querem concluir um trabalho" - e eu menti

Pego o ônibus e vou para o meu lugar preferido, minha cabana subterrânea.
Ficava um pouco afastada da cidade, mas era por ali que eu costumava morar. Na época, meu avô construiu para mim e me instruiu a sempre ir para lá quando quisesse me sentir mais leve e viver no meu mundo paralelo.
O meu antigo lar ficava a uns 150 metros da cabana, e esta virou meu maior refúgio, para sempre.

Antes de chegar nela, passei em uma papelaria com artefatos de escritórios, comprei uma nova pasta e um novo lacre.

Já tinham algumas semanas que eu não ia ao meu "bunker", estava recriando a coragem para isso.
Mas a sensação foi incrível, ver as minhas prateleiras repletas de livros, todos separados por gênero e cor; o meu grande espelho na parede ao final do cômodo, em que eu passava horas sendo eu mesma, para o meu reflexo; as luzes, que podiam ter alterações de cores e traziam uma explosão de sensações; o meu rádio, que tocava minhas músicas, enquanto eu deitava no tapete vermelho cor de sangue e apenas contemplava cada mínimo som; e, por último, a minha caixa colecionadora, em que guardo meus maiores segredos.

Sento em meu tapete, pego a pasta na mão e me preparo para o que viria a seguir.

"O que?" - penso enquanto vejo milhares de papéis que constam o nome de minha mãe e de meu falecido pai.
Minha mãe estava sendo investigada pela morte de Daniel, meu pai. E é nesse momento que tudo se torna uma tortura para mim.

Não consigo conter minhas lágrimas, porque mais uma vez isso vem me assombrar. Mais uma vez sinto que estou andando para o caminho da antiga Nienna.
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Fevereiro, 2014

"Nienna! O que você fez? Por que fez isso? Eu vou te levar para um hospício!" - minha mãe berrava, com os olhos saltantes, repletos de lágrimas e um rosto em chamas.

A minha mãe tinha acabado de entrar na sala, quando me viu ao lado de Daniel, morto, sobre um tapete cor de sangue. Eu não estava em prantos, não estava chorando, não tinha reação nenhuma.

Tudo o que eu fiz, foi exagerar na dose dos remédios que precisava dar ao meu pai, diariamente. Ele estava, aparentemente, com problemas de saúde faziam alguns meses. Eu ficava com ele após a escola e dava os medicamentos. Todos os dias, minha mãe deixava a quantidade certa dos comprimidos e escrevia em um bilhete o horário de cada um. No entanto, ela não esperava que eu soubesse onde estavam os remédios e desse sempre a quantidade em excesso.

Nos primeiros meses, não estava surtindo grandes efeitos, ele só estava um pouco mais lento, com a recuperação retardada. Porém, foi no dia 27, 3 meses depois das minhas doses erradas, que ele faleceu. Ele estava no sofá, deitado, e começou a ter grande dificuldade para respirar e iniciou uma série de convulsões.
Quando cheguei até ele, estava no chão, batendo a cabeça diversas vezes no assoalho, com uma força incontrolável.  Não tinha o que fazer.
Eu só segurei um pouco seus braços, deixei com que se acalmasse aos poucos e, por fim, seu corpo parou de lutar.

Parece que fui muito fria, mas convenhamos, não estava mais em minhas mãos.
Essa, porém, não foi a história que contei para a mulher que me entrevistou no manicômio.

Meu pai apresentava alguns distúrbios, segundo os diagnósticos passados. Então, minha mãe não fez nenhuma perícia e apenas declarou aos familiares que ele tinha se matado.
Ela era muito esperta, e cuidadora. Deixou cerca de 2 meses passarem, como se fosse o nosso luto, apenas para não parecer que estávamos fugindo. Mas a verdade é que ela queria me levar para outra cidade, me instalar em um manicômio e ao mesmo tempo deixar essa história abafada.

"Preciso que você diga seu nome, idade e o nome de seus pais, olhando para essa câmera" - a moça do 'hospital', como minha mãe contou para mim, pediu.

"Meu nome é Nienna, tenho 14 anos e meus pais se chamam Liza e Daniel"

Após ter feito o cadastro, minha mãe veio me receber e disse que viria me visitar toda semana e que seria um tempo muito rápido, era somente para que eu não ficasse com nenhum trauma quanto ao que aconteceu.
No fundo, por mais que eu ainda não entendesse muita coisa da vida adulta, sabia que minha mãe me achava problemática e estava querendo me 'curar'.
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Mesmo 5 anos depois da morte, a investigação começou a surgir. Pelo que está escrito nos prontuários, meu pai não demonstrava intenções suicidas. A família pediu por essa busca, já que começaram a achar estranho eu e minha mãe não termos voltado para nossa cidade natal.

No entanto, quem estava sendo apontada como culpada, não era eu, era minha mãe.

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