Memórias

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Eu não consigo parar de tremer e lembrar daquela noite. As várias folhas de papel da investigação estão espalhadas pelo tapete.
As minhas lágrimas já formam uma poça e me fazem sentir totalmente desidratada.
E mais uma vez, uso do que aprendi para me sentir mais leve: pego a corda que estava em minha bolsa, dou uma volta em um pilar e completo com um nó, me certificando de que ela está bem firme. Com o restante da corda, amarro ela em meus pés, de modo que fique bem apertada. Pego a outra corda e amarro minhas mãos em um nó, feito com o auxílio da minha boca.
Ao meu lado, um relógio. A minha única tarefa era conseguir pegar o copo de água que estava do outro lado do cômodo, em cima da mesa, em menos de 3 horas.

Fazer isso expulsava todas as emoções de dentro do meu corpo. Isso sempre funcionou bem. Pode parecer estranho, mas o fato de eu estar preocupada em saciar desesperadamente a minha sede, antes que eu tenha uma morte por desidratação, e também estar gastando tudo de mim, me ferindo ou literalmente surtando para conseguir desatar os nós, me traz, no fim, uma ótima sensação de descanso e alívio.

Felizmente, gastei 2 horas e 48 minutos para conseguir me livrar das cordas e beber a água. Dessa vez nem tiveram muitas marcas, só um pouco de vermelhidão pela pressão das cordas e alguns arranhões enquanto me arrastava pelo chão.

Uma longa respiração. É tudo o que faço depois. Conto até dez, respirando lentamente e recolho as papeladas, ponho na nova pasta e fecho com o lacre.

Sigo meu caminho de volta para casa, em um silêncio absurdo. Gosto que seja assim, gosto da sensação de ouvir apenas os meus pensamentos.

Antes de entrar em casa, pego um casaco na mochila e o coloco, antes que minha mãe perceba alguma marca corporal.

"Mãe, cheguei! Estou deixando sua entrega na mesa, estou subindo.." - falo com a voz ecoando, esperando a resposta dela.

Mas... ela não responde. Quando vou me encaminhando para a escada, passo pela sala de estar e percebo que temos companhia. A polícia.

"Olá, Srta. Santiago. Estávamos esperando sua chegada" - um dos policiais diz para mim, enquanto está com uma prancheta em mãos.

"Ah, claro. Em que posso ajudar?" - olho para minha mãe, esperando alguma dica, mas ela está em um estado de transe e chorando bastante.

"Gostaríamos de perguntar um pouco sobre o que houve com seu pai. Tudo bem?"

"Hm.. é, sim.. tudo bem, sim." - falo com grande dificuldade, com a voz falha e em cortes.

"Na noite em que seu pai faleceu, onde você estava?" - ele senta em minha frente, com seu papel e caneta em mãos.

"Estava em casa, em minha cama. Ele estava dormindo na sala quando aconteceu" - não sei se pareceu que eu estava mentindo, mas espero que não.

"E você foi a primeira a encontrá-lo, certo? Como foi isso?"

Nesse momento, eu já perco o meu equilíbrio emocional e tenho medo de pôr tudo em jogo, ou seja, é hora de causar instabilidade.

"Sr, me desculpe.. eu, eu não consigo. Eu não quero falar sobre isso, eu não posso" - começo a chorar de forma brutal, em que se ouvem soluços periodicamente.

"Certo.. vejo que as duas estão muito abaladas, voltamos em outro momento ou vamos pedir para que respondam às perguntas em um vídeo e nos enviem, se assim for melhor. Tenham uma ótima noite, senhoritas." - ele fala e fecha a porta atrás de si.

Não acho que fui convincente. Ou ele só é bastante frio.

"Mãe... eu, eu acho que eu deveria me entregar, fui eu, certo?" - falo com a voz trêmula, esperando por algum retorno, mas ele não vem. Ela simplesmente me abraça forte, molha meus ombros com suas lágrimas pesadas e depois me segura pelos ombros, passando uma das mãos delicadamente pelo meu rosto.

"Nós vamos ficar bem, ok? Só não vamos deixar que boatos se espalhem. Não queremos ninguém bisbilhotando nossos passados. O que passou, passou. Você era só uma criança." - ela passa a mão em seu rosto, limpando as lágrimas e retomando a voz firme.

Foi uma noite bem intensa. Vou para meu quarto e tudo que consigo pensar é que eu sou um monstro. Mas, o pior de tudo, é que eu gosto de ser quem eu sou. Gosto do meu lado que só eu conheço, que ninguém pode tirar de mim ou tentar julgar.
Depois de passar a maior parte da madrugada em claro, meu corpo começa a clamar pelo descanso e começo a fechar os olhos. Antes eu tivesse me forçado a ficar acordada.

Subconsciente

"Filha, venha aqui, segure minha mão. Vou te mostrar uma coisa."

"Estou indo, papai"

Estamos em um cubículo com algumas argolas nas paredes, cabos de aço, vendas.

"O que é isso?"

"Aqui, é o lugar em que você pode se livrar de toda a fúria e angústia que te atingir"

"Ah, é? Como?"

"Bom, hoje o papai teve um dia muito estressante. Quer me ajudar a aliviar isso?"

"Sim!!"

Ele me pegou no colo, levou minha mão esquerda até uma das argolas e a direita à outra. As argolas tinham uma espécie de fivela, que era capaz de regular de acordo com o tamanho do pulso. Então, ele deixou minhas mãos bem atadas.

- Nienna, eis o seu único desafio. Livre-se das argolas.

"Mas, papai.. como? Minhas mãos estão presas! Meus braços doem" - eu disse com uma voz de choro, de como já quem não estava aguentando

"Filhota, o grande segredo para encontrarmos a calmaria, é se deixarmos toda a dor, angústia, ou sentimento ruim ser extinguido por meio da sensação física. Você verá, e não precisa ter medo, estou aqui."

"E... como.. isso.. vai te acalmar, papai?"

"Estou experimentando a pior das dores agora, meu amor."

"Aaaaaaaaaaah!" Eu deixo sair um grito mais alto do que podia ter imaginado. Meu corpo estava todo suado e meu coração batendo de forma muito acelerada.

"Filha??? O que houve? Está tudo bem?"

Olho para ela, apenas acenando várias vezes que sim, mas com uma expressão facial de temor genuíno.
Ela deita ao meu lado, mexe delicadamente em meus cabelos e em meu rosto, até que eu consigo pegar no sono novamente. Eu não queria chegar no momento de acordar e ter de encarar toda a realidade de novo, talvez contar para minha mãe sobre o meu sonho.
Não sei, eu só não quero que os meus demônios voltem a circundar em minha mente.

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⏰ Última atualização: Oct 29, 2019 ⏰

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