× lowercase intended ×
ele era um anjo.
jeon passava-lhe a mão pelo rosto de faces rosadas, bochechinhas espalmadas contra o colchão antigo colocado no chão. no fundo, ouvia-se o som de água, continuamente pingando da torneira ao canto oeste.
os vidros partidos da bancada norte deixavam o tom escuro do céu misturar-se com o branco do luar e o ligeiro tom amarelado dos candeeiros na rua. lá fora, não se ouvia um som, um piar sequer.
mas jungkook ouvia.
ele tinha plena ciência de que jimin era um anjo, e que sempre havia sido, desde o momento em que haviam embatido um no outro e o moço mais pequeno sorriu-lhe como se o seu dia dependesse disso, como se fosse feliz.
fora como se um fio ténue houvesse sido atado ao redor dos mindinhos de ambos e, embora puxassem, estariam sempre ligados. encontravam-se num profundo estado de simbiose, ainda que não admitissem.
e era isso que jungkook ouvia. as vozes que constantemente o asseguravam que jimin era a escolha certa; os sinos em que ele tão piamente acreditava que trariam a sua alma gémea. e, do mesmo modo que jimin, o anjo, era essa pessoa, ele era, também, jimin, o pecado.
jeon lembrava-se perfeitamente da altura em que achava jimin santo, puro. e sabia que nunca, nem num milhão de anos, alguém tão angelical quanto o dito cujo se apaixonaria por um rapaz como ele.
deitou-se no colchão perto do outro, apertando o pendente de cinábrio que trazia ao pescoço, semelhante ao do namorado deitado junto a si. um grunhido leve foi ouvido quando, ao se estender sobre a cama que haviam improvisado naquele armazém, sentiu as molas salientes pressionarem contra suas costas agressivamente.
o cheiro a chuva e terra molhada enchia-lhe as narinas e sua memória levou-o até sua infância.
nascido no seio de uma família desmoronada, em que as molas do colchão são a cama e o estrado os lençóis, onde a disfuncional anatomia de sua árvore genealógica parecia, agora, normal; era um cachopo diferente dos demais, sempre metido em confusões e rodeado de uma aura densa e negra.
esta era sua normalidade.
dormir num colchão dividido com seu amado no chão de um armazém outrora usado para qualquer atividade têxtil em meados de séculos passados, aquando da revolução industrial.
sentiu-lho ferver no sangue, apertou o cristal com mais força e suspirou. abruptamente levantou-se do colchão, recebendo um grunhido baixinho de jimin como resposta.
sentia as unhas negras das ordens de seu pai ora entranhadas em si rasgar-lhe as veias, gritando-lhe num tom mudo que o fizesse.
morte. sangue. agonia.
então era ali, naquela noite de primeiro de janeiro, num ambiente pútrido, que jeon se havia encontrado a bater no fundo.
— cumpre as ordens, filho, – diria sua mãe, se ainda fosse viva, mas o seu sangue sujara-lhe as mãos, manchara-lhe as paredes uma vez brancas, mas não mais, agora cobertas por um papel de parede barato qualquer, com desenhos desconcertantes e alusivos a cruzes devidamente posicionadas.
as gotas do líquido rubicundo desenhavam figuras alegóricas a um deus negro, o seu deus negro.
olhava-o, penetrava-lhe a alma.
era ao ouvir a música que provinha do interior de sua cabeça que jungkook se apercebera do quão horripilante poderia ser que o outro abrisse os olhos nesse momento e o visse, precisamente, encarando-o no escuro.
num escuro que não era escuro, mas era iluminado pelo menino deitado na cama e pela lua, nunca convidada, mas sempre bem-vinda.
jungkook havia perdido a sanidade.
era naquele armazém partilhado em londres que, um dia, encontrava a ciência de amar e a sanidade mental que, de tão mente aberta, entregou a park jimin, o moço que dormia que nem um anjo na cama minimamente precária.
porque ele o era.
jimin era um anjo enviado para cuidar de um moço novo, rufia e delinquente, que mais vezes estivera para lá do que para cá, cuja vontade de morrer ultrapassaria, muito provavelmente, a de viver.
contava-se pelas cicatrizes, pelos cortes que ainda saravam e pelas ligaduras manchadas ao redor da cintura fina do mais novo.
e era por ser um anjo que jimin não devia estar ali. porque, enquanto as suas asas emanavam luz e paz, as de jungkook eram negras e pesadas, envolventes.
colou seus lábios à testa de jimin, lamuriando-se penosamente contra a pele tão quente.
baixou-se, engoliu em seco e olhou o céu, antes de encarar o pequenino. cortou-lhe as asas, beijou-lhe as costas e lambeu os lábios manchados de sangue, murmurando um pedido de desculpas.
perdoava-se de todas as maneiras que sabia, que a fala cortada lhe permitia, e agarrava-se ao que restava da vida ténue de jimin.
abruptamente o outro acordou, olhando jeon naqueles olhos que outrora guardavam luz, mas refletiam agora o seu estado rubicundo, onde se esvaía em sangue.
a visão escurecida como a noite, o ar escasso como a vida que lhe escapava por entre os dedos.
apertou o pingente de cinábrio igual ao do namorado e gritou, em plenos pulmões, o nome de deus, ou talvez qualquer outro nome, e tudo o que jeon fez foi apunhalá-lo, silenciando-o.
e, tomando as suas vestes claras e asas manchadas de sangue, jungkook saiu, abandonando o corpo sem vida, olhos baços e bem abertos, desonrado e vazio.
« e que um santo caia hoje, criando vida, jorrando sangue, em nome de um deus que se veste de negro, em nome de meu filho »
VOCÊ ESTÁ LENDO
𝐀𝐍𝐆𝐄𝐋𝐒. | 𝐉𝐊
Mystery / Thriller❝ cortou-lhe as asas, beijou-lhe as costas e lambeu os lábios manchados de sangue, murmurando um pedido de desculpas ❞ ⚊ onde um anjo cai em londres, pela mão de outro. ⛧ 𝔥𝔢𝔵𝔞𝔠𝔞𝔱𝔢 | 𝔪𝔪𝔵𝔦𝔵.