Capítulo 1 :: A Saudade

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Desde pequena sempre eram somente minha vó, minha mãe e eu morando em um apartamento no Morumbi em São Paulo. Nossa casa é um misto de Alemanha e Brasil, enquanto minha avó cisma em investir em decorações com referências alemãs, minha mãe se esforça do mesmo jeito para trazer vários e vários objetos decorativos do Brasil.

Pensa em duas pessoas completamente diferentes, água e óleo, minha mãe e minha vó. Mamãe trabalha com serviço social, é voluntária em várias ongs e não para em casa; vive para os outros - de outros digo - estranhos completos com nenhuma conexão e nenhuma referência com ela. Pessoas que ela nem conheceu, mas que sofrem no dia a dia são sua especialidade.

Por outro lado, temos vovó. Vovó se dedica conforme o raio de aproximação dela. Quanto mais próximo, quanto maior a conexão com ela, maior dedicação você terá. Eu, a neta, sangue do sangue, morando na mesma casa e sendo criada por ela, tenho 90% de sua atenção. Aos vizinhos diria que ela dedica 8% – se eu estiver na escola - acho que os outros 2% ficam com pessoas que pegam sempre o mesmo transporte público ou a atendem em algum comércio frequentemente.

Mas nem sempre foi assim, dizem que minha mãe e minha vó eram muito próximas, viviam juntas, mas pelo jeito minha chegada ao mundo mudou um pouco as coisas. Talvez meu nascimento possa ter mudado essa relação motivada por ciúmes ou pela necessidade de autoafirmação que minha mãe também demonstra. Sendo minha avó a única representação de carinho que tinha dentro de casa e minha mãe não, isso pode ter desencadeado um distanciamento da minha mãe, da vovó e consequentemente de mim.

Esse distanciamento parece ser ainda maior quando vovó trazia à tona a memória do meu avô. Desde pequena minha vó dizia que meu olhar penetrante e meu intelectual a lembrava dele e toda vez que era essa a pauta de nossa conversa, minha mãe saía ou fazia caras de desgosto.

Nunca o conheci e mesmo vendo minha mãe contrariada com o assunto, por diversas vezes pedia para vovó falar mais sobre isso pois sentia que minha ligação com o vovô crescia sempre que ela fazia essas referências e associações. Vovó me contava que se apaixonou pela eloquência dele. A beleza dele não era um padrão da época mas a inteligência era tão grande que as pessoas paravam para ouvi-lo e mesmo ciente disso, ele era extremamente reservado, fechado e antissocial.

Pode até ser que eu não seja exatamente igual meu avô como vovó fala, mas de tanto ela falar acho que adquiri essa falta de habilidade social dele só para ela voltar a tocar no assunto. Já a tal inteligência e a eloquência, tenho minhas dúvidas que herdei e se sou capaz de desenvolver.

Minha avó me contou várias histórias do meu avô, a que eu mais gostava é de como eles se conheceram. Meu avô estava num restaurante conversando com amigos dela em comum, ela se sentou a mesa e o ouviu contar que era um refugiado da Segunda Guerra, que era um sobrevivente e por isso evitava falar da guerra. Falou sobre filosofia, antropologia e ela ficou imediatamente magnetizada por ele. Naquela mesma noite conceberam minha mãe, mesmo sendo condenado mulheres serem tão atiradas naquela época.

Ah! Fazer o quê, a vovó é assim. Não importa o que pensem, ela tem opinião própria e não está nem aí para o julgamento que podem fazer dela.

Seu pensamento era tão vanguardista que mesmo minha avó ainda saindo com o vovô grávida e ele ciente de sua condição, ela relevou qualquer documento ou oficialização do relacionamento por entender a fragilidade social dele diante a uma série de traumas e pavores do seu passado. Ele fugia das pessoas e evitava a exposição e minha avó seguia sempre lamentando o quanto o passado dele não permitiu que tivessem um futuro. Ela o compreendeu e aceitou essa situação e se mostrava satisfeita por pelo menos ter conquistado uma herança que nos sustenta até hoje.

Nesses meus 15 anos, admito que gostaria muito de tê-lo conhecido, mas segundo minha própria mãe, nem mesmo ela tem lembranças dele. Talvez a relação dela com minha avó, não seja propriamente por minha causa, mas sim pelo rancor da minha mãe querer ter um registro do pai, não sei. Até cheguei a perguntar para minha mãe uma vez sobre isso, mas o máximo que ela disse foi "nada a ver menina".

Minha avó me contou que meu avô chegou a conhecer a filha, mas ela não tem recordações disso pois era muito pequena. Minha mãe nasceu em 76, meu avô faleceu, segundo diz minha avó, em 79. Minha mãe tinha apenas 3 anos quando o pai morreu.

Outra história que minha avó adorava contar era como minha mãe engravidou. Minha avó diz que minha mãe não queria – de jeito nenhum – ter filhos. Até que quando completou 28 anos chegou em casa e falou: "estou grávida e o pai quer que eu tire a criança". Minha avó então a acolheu, falou que sempre quis ser avó e se prontificava a cuidar caso ela desejasse manter a gravidez.

Ah! As histórias da minha avó eram meu poço de riquezas e, eu digo eram, porque hoje faz uma semana que minha avó faleceu e começo a escrever esse caderno apenas para tentar ter novamente um pouco dela guardado comigo. Quero compilar as memórias que ela me proporcionou para quem sabe diminuir um pouco esse buraco que parece aberto no meu peito.

Ainda não consigo acreditar que não terei mais ela para conversar, que a longo prazo posso esquecer esse tanto de histórias, o carinho e o cuidado que ela sempre me proporcionou.

Agora estou sozinha, agora não tenho ninguém para me cuidar. Sei que minha mãe me ama, mas ela não tem carinho e atenção para dar. Me cabe só seguir os mais variados conselhos que em suas histórias minha avó me deixou. O primeiro deles: "chega uma hora que a gente precisa amadurecer".

Lembro até hoje o dia que ela me falou isso enquanto preparava na cozinha de casa uma xícara de café. Eu estava desabafando sobre a minha dificuldade em conversar com a minha mãe e ela comentou que, quando era mais jovem mamãe era alegre, sorridente e muito carinhosa, até que de repente chegou a hora que ela teve que se deparar com as verdades e a dureza da vida e, ao invés de erguer a cabeça e ir em frente, ela resolveu se fechar. Nessa hora minha vó chegou pra mim, olhou nos meus olhos - muito séria - e me alertou: "com você vai chegar a hora que você também será confrontada com as dificuldades, lutas, culpas e problemas da vida. Chega uma hora que a gente precisa amadurecer. E você, Mia, precisa entender que você pode se fechar para o mundo ou se reinventar nele".

Admito que não entendia essa frase até semana passada. Quando vovó faleceu, meu mundo caiu. Ela era a única que nunca me julgou por meu jeito fechado e introspectivo, pelo contrário, ela ria e comparava com meu avô, mas sempre me falou: "é lindo você ser assim, me lembra demais meu passado, seu avô, mas você precisa se abrir para conhecer mais pessoas".

Agora estou eu aqui, desabafando com um diário, no ônibus a caminho da escola, pois hoje eu preciso ser forte e preciso me reinventar. Eu preciso tentar me abrir. Como? Não faço ideia.

Minha CulpaWhere stories live. Discover now