Nunca imaginei que encontrar e criar laços de amizade com alguém seria tão complexo e árduo. Nessa semana já tentei me aproximar de todas as meninas da minha turma e de alguns rapazes. Uma tentativa que, começo a acreditar, foi em vão.
Sei que prometi me abrir, sei que essa sensação de sozinha no mundo, que essa solidão profunda e absurda, tende a passar, mas gostaria de me sentir mais capaz socialmente e que a minha solidão fosse por eu realmente querer estar só e não por uma falta completa de habilidade social.
O desespero tem sido tanto que cheguei a questionar minha mãe como fazer amigos. Óbvio que minha mãe Leona, direta, fria e seca - como sempre - me aconselhou a deixar as coisas seguirem o próprio fluxo e que isso acontece naturalmente. Eu tenho 15 anos, se não aconteceu naturalmente até agora, provavelmente não acontecerá mais.
Nessa semana me dispus até a mudar minha rotina. Lanchava sempre na biblioteca da escola, envolta das palavras e dos livros de história - minha verdadeira paixão; mas essa semana não, fiquei rodeando o pátio em busca de alguém para sentar, me ofereci várias vezes para fazer companhia a outras pessoas que também pareciam sós.
Em alguns casos as pessoas só estavam aguardando outras, em outras as pessoas realmente estavam desejosas por estar só e os outros casos eram pessoas que me aceitavam, eu sentava e começava a conversar, mas sabe quando você força o diálogo? Ou a pessoa não gostava do assunto, ou não entendia sobre o que eu falava ou simplesmente estavam entediados comigo.
Escrevo agora com esse vazio no peito. Essa sensação de total incapacidade de reinvenção própria. Uma vontade absurda, um desejo de cumprir uma fala da minha vó, mas uma inutilidade social completa da minha parte.
Agora pensamentos ficam martelando em minha mente, pensamentos que nunca achei que permeariam meu consciente: "Cadê você vovó? Cadê você para me ajudar a concretizar esse desejo de cumprir pelo menos um conselho seu? Cadê você para me ensinar o passo a passo dessa conquista? Onde buscar em mim o poder de realizar algo?"
Sabe o que é pior? Que esses pensamentos não estão mais me deixando concentrar nos estudos e agora está rolando minha aula favorita. Sinto o professor me fuzilando com os olhos enquanto escrevo copiosa aqui, só que - desculpa professor Marcelo - agora não vai rolar.
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Acho que o espírito de minha avó lê diários, só pode. Logo depois que fechei o diário meu professor comentou que começará uma série de aulas sobre a segunda guerra mundial. Um dos alunos presentes levantou a mão e perguntou se poderia gravar um vídeo com seu avô - um dos sobreviventes de Auschwitz - para auxiliar nas aulas. Marcelo se empolgou com a ideia, incentivou o aluno não somente produzir o material, mas também, informou que quem também tivesse um parente que trouxesse um olhar mais humanizado para a segunda grande guerra, faria desse seu trabalho do mês e seria liberado da prova.
Na mesma hora que ouvi isso, levantei a mão e informei que também tenho um avô que foi acolhido no Brasil por causa do nazismo só que, ao contrário do outro aluno, meu avô faleceu e só tinha informações sobre o que, durante esses 15 anos, minha avó contara pra mim e o que minha mãe sabia da história.
Professor Marcelo então pediu para que fizéssemos uma dupla, o menino e eu, montando um trabalho com 2 visões distintas; uma da própria vítima e outra na fala dos familiares. Pediu para nos reunirmos e que teríamos 3 semanas para concluir o trabalho já que na quarta semana a aula seria dada por nós e seria o fechamento da matéria. Nossa nota seria com base na aula que dermos. Uma visão mais humana e das vítimas do Nazismo.
Ao final da aula o menino veio conversar comigo. Ele é judeu, se chama Daniel, seu avô tinha um irmão gêmeo e foi levado a Auschwitz para ser usado como experimento médico. Seu avô contou que chegou muito novo ao campo de concentração com seu irmão gêmeo, uma irmã mais velha e seus pais. Enquanto o paradeiro dos pais e da irmã se perdeu no momento que foram separados, seu irmão viveu com ele praticamente toda a vida, vindo a falecer a pouco tempo, 2 anos atrás.
Daniel disse que das coisas que ele tem mais orgulho e carinho é da história do avô e da relação que tem com ele.
Ao ouvir seus relatos sobre a relação deles, e também sobre o passado de seu avô, enxergava em mim mesma, minha relação com vovó, a empatia que sentia com meu avô através das histórias, características e associações que me contavam dele. Ouvir Daniel falar representava quase um deja vu, uma sensação familiar, finalmente estava em casa.
Combinamos nos reunir nas terças e quintas a tarde. Dias que Daniel não tinha atividades extracurriculares. Optamos por começar captando o máximo que poderíamos do avô dele, depois apresentaríamos esse material bruto para a minha mãe Leona, ajudando a lembrar tudo o que minha avó poderia ter contado a ela e também para termos somente uma linha de construção da história.
Aproveitei para anotar algumas perguntas importantes para já começar a sondar hoje a minha mãe e vermos como encaixar os pontos de vista amanhã no meu encontro com o Daniel ou até - quem sabe - na hora do lanche.
Lembrar de perguntar pra mamãe: "Meu avô foi para algum campo de concentração? Em que ano será que ele conseguiu fugir e como? Ele pretendia voltar para a terra natal? Ele que escolheu o Brasil ou foi aonde designaram pra ele?"
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Se empolgação e ansiedade pudessem ser transmitidos no papel, estaria transbordando esses sentimentos enquanto escrevo aqui.
Minha mãe acaba de dizer que meu avô também foi para Auschwitz, tudo bem que ela respondeu bem contrariada, irritada, sem querer conversar sobre, só que quando contei a ela que era um trabalho para escola valendo nota, ela relaxou um pouco e comentou - mais raso do que imaginava mas pelo menos me contou - coisas sobre meu avô que não sabia. A mais interessante é que sim, ele foi para Auschwitz, ou seja, ao ouvir o relato do avô do Daniel pode ser que minha mãe se recorde de histórias da vovó e se permita comentar mais sobre o assunto, envolvida pela emoção. Afinal, não é possível que ela seja tão fria ao ver um vovô contando o sofrimento dele no Campo de Concentração e não relevar seja a relação dela com a vovó, seja a relação comigo ou até a raiva de não ter sido registrada por ele.
Quem sabe, isso tudo não está acontecendo com uma mãozinha da vovó. Ela deve estar olhando por mim e orquestrando tudo para que eu tenha um amigo, uma relação melhor com minha mãe e - até quem sabe - apresentar meu avô com orgulho para futuros amigos.
Mas voltando, meu avô não queria ter vindo ao Brasil, segundo minha mãe, ele preferia a Argentina para morar só que conseguiu apenas acolhimento com segurança no Brasil e a vovó dizia sempre a ela do desejo dele voltar para a Alemanha, por isso esse apego da minha vó por colecionar e decorar a casa com tantos elementos de lá.
Ela disse também que a vovó nunca foi a Alemanha, mas que meu avô falava com tanto amor e carinho de sua terra que ela cogitava morar lá, mas com a gravidez de mamãe vovó resolveu ficar. A mamãe acredita que se ele tivesse vivido mais, provavelmente tentariam voltar ou se mudariam de vez para a Argentina; mas essa é a apenas uma opinião dela: "as coisas não são tão simples assim".
Não me contive e óbvio que mandei essas informações por whatsapp para o Daniel que viu sentido em muita coisa. Ele contou que muitos nazistas ao fugirem foram morar na Argentina e por isso ele, provavelmente, gostava de lá só que tinha medo de morar lá. Uma informação impressionante e que com certeza vou usar no trabalho.
Daniel aproveitou nossa conversa e me chamou para passar a tarde com ele e o avô para eu ouvir em primeira mão e perguntar o que quisesse. Ele disse que queria fazer isso para que, se fosse ele que não tivesse o avô e conhecesse só de ouvir falar, gostaria que alguém o ajudasse a se conectar com ele e Dani acredita que seu avô pode ajudar nisso.
Dani tem se mostrado solidário, simpático e extremamente solícito as minhas mensagens. Em um momento cheguei a falar pra ele que estava adorando fazer esse trabalho com ele e recebi de resposta: "Estou adorando te conhecer. Você é incrível! Não sei porquê nunca conversamos antes. 😉".
Obrigada vovó! Tenho certeza que você está com o vovô orquestrando tudo isso pra me ajudar e é a responsável por eu não me sentir mais solitária.
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Minha Culpa
RomanceMia acaba de perder a avó e estimulada pelas histórias que ela contava, se abre para o mundo e conhece Daniel. Ambos tem em comum avôs que se refugiaram no Brasil por causa da Segunda Guerra Mundial e esse assunto os aproxima, nascendo um grande amo...