Como de costume, as cinco da manhã, meu despertador toca pela segunda vez e eu levanto ainda um pouco chateado por ter cedido ao primeiro e continuado na cama. A verdade é que nas últimas semanas eu prefiro ficar dormindo do que acordado pensando em coisas que acredito que não deveria pensar. Por vezes, até durante o sono, elas me incomodam, em forma de pesadelos. Acordo sentindo as gotas de suor quente descer entre meus seios e escorrer por minhas costelas, ocasionalmente chegando a deixar toda minha camisa úmida. O desespero se instala feito a água; não importa o tamanho ou forma do reservatório, ela o preenche completamente, e em alguns casos, transborda. Sei do que se trata, no entanto, é difícil de descrever a angustia. É como uma música desagradável que se repete incansavelmente, mas não tem como identificar de onde está vindo. A parte instrumental são os questionamentos que, de tantas repetições, já não são coerentes ou fazem sentido. Estes, se misturam com o que seria o vocal: um som mais claro e compreensível, porém igualmente repetitivo. Toda "canção" é sobre fracasso. Já tem um tempo que tudo que me dava prazer perdeu a cor. As vezes é tão intenso, que se assemelha a construções em ruínas, um céu completamente acinzentado, ou até mesmo cores que antes eram vivas, e agora estão em tons pasteis beirando a neutralidade completa. No começo de tudo isso ficava refletindo se era um potencial problema de visão.
Graças a escuridão gerada pelo blackout, e o cheiro de incenso de Alecrim, que neste momento inundava o quarto, ficar deitado ali mais um dia inteiro, como todos os anteriores, era realmente tentador. Em algumas pesquisas no Google, descobri o suposto poder do alecrim de intervir em maus pensamentos, então o comprei, claro que em uma loja virtual, já que sair de casa não é uma opção tão boa, ou melhor, era uma péssima opção. Ainda que as janelas e porta estivessem fechadas, podia sentir que se tratava de um dia frio. Por sorte, estava debaixo de dois cobertores de microfibra, os quais eu mantinha certo amor material questionável. Um era de tonalidade fúcsia, que ficava entre a cor rosa chiclete e a rosa neon. Este, contrastava quase que perfeitamente com o azul "Azur". Apesar de parecer algo bobo, estar debaixo daquele manto, fazia com que eu me sentisse melhor, já que ainda escondia quem eu era do resto do mundo. Tê-lo encostando em minha pele, e me aquecendo em tempos de baixa temperatura correspondia a minha vontade de ser protegido por uma bandeira, uma causa ou um grupo de pessoas como eu, mesmo que ninguém soubesse o caos desproporcional que eu trazia comigo.
Em meio ao breu, percebo um pequeno feixe de luz aumentando frente a porta, involuntariamente fecho os olhos e os tampo com as duas mãos. Sinto um pequeno frio na barriga dançando junto com as batidas do meu coração, agora aceleradas. Sempre que eu queria muito não estar em um contexto, procurava não manter contato, na tentativa falha de que o conflito sumisse. Minha mãe entrou no quarto e sem ao menos me olhar, levantou a mão de forma gentil, me levando a entender que a brutalidade do choque em que golpeou o interruptor era algo completamente premeditado. Mesmo que o barulho não tenha me assustado, uma vez que eu já estava a observando, junto a ela eu podia sentir a carga negativa entrando no meu refúgio e dizimando o ambiente reconfortante que havia se instalado. Quando a luz invadiu o cômodo, e ela me percebeu a encarando, foi perceptível seus ombros se encolhendo na tentativa de conter a frustração. Era possível sentir a raiva dar lugar a vergonha enquanto ela me observava atentamente. No momento em que trocávamos olhares, eles eram repletos de sensações variadas que eu nem sempre era capaz de explicar. Entretanto, ela precisava manter-se firme e seguia com sua atitude grosseira.
– Bom dia – Digo. A expressão dela ao me ouvir ainda não é das melhores. As marcas de expressão adquiridas ao longo da vida, somadas as recentes devido ao estrese, estavam novamente contraídas em um gesto de desprezo construído de forma mecânica. Desde o dia que fomos ao psiquiatra e comecei com os antidepressivos, ela me cobra insistentemente estar bem, entretanto eu passo a maior parte do tempo abstraindo a energia ruim que ela me transmite. Lidar com essa realidade de manhã sempre tende a desestabilizar-me e deixar irritado.
– Já não era para você estar de pé? Ontem mesmo falou na minha cabeça sobre mudar de vida e hoje... Bom, acho que você sabe que continua a mesma, não é? – Disse com um tom de ironia, que me fazia revirar os olhos e ter um pequeno acesso de raiva. Antes que terminasse já estava a caminho da cozinha, e eu agradecia mentalmente por isso. Voltei a tapar os olhos com as mãos aquecidas por anteriormente estarem dentro dos cobertores e balancei a cabeça tentando me desvencilhar de tudo.
A forma com que as pessoas ao meu redor, principalmente os familiares, se dizem muito "pé no chão", e ao mesmo tempo acreditam que algumas coisas acontecem como um passe de mágica, é extremamente contraditório. Um gatilho que sempre me leva mais fundo. Creio que um dia vão compreender que meus medicamentos são feitos de substancias químicas e não de elixir de cura, e apesar de se tratar de mitologia, como eu gostaria que fosse exequível estar bem apenas tomando alguns goles de um líquido milagroso. Ainda assim, por incrível que pareça, com certeza minha família é a melhor que eu poderia ter. Gosto de pensar que apesar dos conflitos, eles querem me ver bem. Pelo menos acredito que sim.
Apesar de indisposto e muito bem aquecido, resolvi me levantar e tomar um banho, porém antes de tirar a roupa, passei alguns minutos me encarando no espelho. Sempre gostei dos meus olhos e a forma com que o castanho me remetia à normalidade, fazendo com que eu me sentisse uma pessoa normal. Não gosto de usar esse termo, mas era o que pensava desde a infância. Eles, em conjunto com minha boca e nariz, são uma das poucas partes em mim que eu não quero que mude. A algum tempo eu aprendi a lidar com a disforia, mas ainda existem momentos que ela insiste em voltar para me lembrar da dor. Quando percebi que não aguentaria segurar o choro, me virei de costas e respirei fundo. Esse exercício quase diário era muito dolorido e sempre acabava de forma parecida: muito mal.
A água quente que descia contornando as curvas do meu corpo levava consigo um pouco das impurezas que eu me sentia carregando. As vezes penso que se tomasse um milhão de banhos, ainda não conseguiria me livrar da sensação de sujeira. Ela vai muito além do físico. A contradição externa e interna faz com que me sinta sujo e imoral.
O vapor já tomava conta do banheiro e eu me sentia cada vez mais acolhido pelo fervor, podia sentir cada músculo se relaxando aos poucos, e a tensão do estresse que minha mãe havia me gerado, se dissipar. Fechei os meus olhos e coloquei a cabeça debaixo do chuveiro, fazendo com que o som ambiente também se abafasse. Aquela era a forma com que eu queria passar o resto dos meus dias. Quente, relaxado e em silêncio.
Voltei da imersão ao ouvir a porta sendo brutalmente golpeada – Nós não somos sócios da CEMIG! E você muito menos ajuda em casa! – Gritava minha mãe ao continuar batendo na porta. Senti indo por água abaixo o relaxamento, mas agradeci por tê-lo tido, senão iria ser a gota d'água. Depois de respirar fundo, desliguei o chuveiro, me sequei e fui para o meu quarto sem nem mesmo encarar minha progenitora. Peguei a primeira roupa dentro do guarda roupa e a vesti. Arrumei minha cama e abri a janela, podendo perceber que o dia estava realmente frio lá fora. Peguei minha blusa de frio e fui embora caminhar.
Chegando à porta, me dei fé que minha mãe não estava em casa mais e que o frio estava a ponto de congelar o resto do meu coração. Dei meia volta e deitei de novo.
Há algum tempo que fechar os olhos me leva a um lugar obscuro, eu podia vivenciar aquela fincada vindo dos meus rins, fazendo me contorcer em cima da cama, enquanto o suor minando do meu rosto se misturava as lagrimas, e o pensamento de desespero por acabar com tudo aquilo. Num suspiro profundo abri os olhos e tentei me desvencilhar das lembranças enquanto balançava a cabeça. As memorias do dia em que eu fui parar no hospital por implicações renais, já que eu não tinha força pra levantar da cama nem mesmo para urinar, sempre eram recorrentes. Foi justamente este dia que a minha mãe começou a considerar minha "preguiça" como uma doença e me levar ao psiquiatra. As doses de remédio que estou tomando são extremamente altas, mas até então, quinze dias depois, não mudou muita coisa. Perdido em meio aos pensamentos, adormeci.