Prólogo

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Tudo o que sabemos do amor, é que o amor é tudo que existe.Emily Dickinson

Em 2010, Antoine Compagnon, professor de literatura francesa da Collège de France, em Paris, publicou a obra O Demônio da Teoria, cujo principal objetivo é discutir o conceito de literatura e o que tal expressão artística engloba. Entretanto, a discussão trazida pelo primeiro capítulo de Compagnon em seu livro deixa claro que não há um conceito definido de literatura. Trata-se de algo subjetivo, sorvendo-se dos nossos valores. A conclusão que o autor tomou a respeito do que é literatura, ao final do primeiro capítulo, é que literatura é o que se chama aqui e agora de literatura. Literatura é literatura.
O mesmo pode ser dito à respeito do amor. Amor é amor. Amor é tudo o que se chama aqui e agora de amor. Não há uma definição única, muito menos uma definição que podemos dizer que é mais completa, mais concisa, mais verossímil.
Imaginemos que em algum momento na história, em algum lugar do mundo, um linguista decida investigar a definição da palavra amor. Ele pergunta-se ''afinal, o que é isso?''. Tal linguista, sabendo que deve levar em conta a resposta que a sociedade lhe traz para sua pergunta, sai nas ruas de sua cidade à procura de cidadãos dispostos a lhe ajudar. Na padaria, o linguista pergunta ao padeiro que lhe atende, ''senhor, o que é amor?''. O padeiro ri e olha estranho para o linguista. ''Que pergunta é essa, meu jovem?''. ''Veja bem, senhor'', diz o linguista, ''quero provar um ponto, uma hipótese, a respeito da palavra que tanto usamos. Amor. E preciso da sua ajuda para tal''. Apesar de ainda estranhar a pergunta do linguista, o padeiro lhe responde: ''bem, de que tipo de amor estamos falando? Existem vários, você sabe (...) é difícil colocar em palavras, viu?''.
O linguista assente, concordando com o padeiro, que logo continua a falar. ''Acho que amar alguém é entender o outro, se colocar no lugar do próximo. Mas o amor é confuso''. O linguista agradece ao padeiro por sua ajuda e sai da padaria. Na rua, ele encontra uma menina de doze anos passeando com seu cachorro. Ele para na calçada para acariciar o cão e olha para sua dona. ''Muito dócil ele, não é?'', diz o linguista. ''Sim, ele ama carinho!'', comenta a dona do cão. O linguista, ainda acariciando o cachorro, pergunta: ''o que é amor?''. A menina olha pensativa para o homem. ''Como posso saber, moço? Nunca senti isso'', responde ela. ''Você não ama seu cachorro?''. Ela olha para o cão, que ainda recebe carinho e agora abana seu rabo de um lado para outro freneticamente. ''É claro que amo, mas esse tipo de amor é diferente''. Ela se abaixa para olhar seu cão mais de perto. ''Acho que o amor é confuso, moço, existem muitos deles''.
O linguista se levanta, respirando fundo e concordando com a menina e volta a caminhar pelas ruas de sua cidade. Em um determinado momento, vê uma livraria e decide entrar. Procurou por vários livros até que viu, escondido em uma estante mais ao fundo da loja, um dicionário. Abriu-o e procurou pela palavra desejada. ''A.mor: (s.m): sentimento afetivo; afeição viva por; afeto: o amor a Deus, ao próximo''. Olhou ao seu redor e, logo a sua direita, encontrou uma mulher que aparentava ter sua idade. Aproximou-se lentamente e, ao chamar sua atenção pela proximidade, falou: ''com licença, abri esse dicionário e estava me questionando a respeito dessa definição. Você poderia me dizer se concorda com ela?''. Ele alcança o dicionário à mulher, que toma o livro em mãos e lê o enunciado em alguns poucos segundos. ''Acredito que amor é uma coisa muito abrangente pra dar uma única definição, se você me entende. Então acho que, em parte, essa definição não está totalmente errada''. Sem concordar ou discordar da opinião da mulher, o linguista apenas agradece sua ajuda, compra o dicionário e sai da livraria.
No caminho de volta para sua casa, ele começa a pensar sobre as três respostas que obteve. Apesar de saber que três respostas não seriam o suficiente para embasar seu trabalho, ele achou completamente fascinante a divergência de conceitos e definições. O padeiro e a menina, apesar de serem socialmente muito distintos, deram respostas muito semelhantes semanticamente: ambos tinham a crença de que existem muitos ''amores'' por aí e, por acharem o amor ''confuso'', não souberam atribuir-lhe uma definição.
O que mais intrigou o linguista, no entanto, foi o fato de a menina ter lhe dito que não saberia como responder a algo que nunca tinha experienciado. E, no entanto, ela havia lhe dito que ama seu cão. Provavelmente também amava seus pais e, se tivesse algum irmão, então provavelmente o amava também. Então como não havia experienciado tal sentimento?
Apesar da divergência entre as três respostas, o linguista, ao chegar em casa, sentou-se no assento de sua escrivaninha e anotou minuciosamente uma análise sobre o que ligava as três opiniões: ao mesmo tempo em que as três figuras assumiram que o amor, por não ser homogêneo, mas por ser polimorfo, apresentava diversas facetas, também assumiram que sua definição é subjetiva. ''Acho que amar alguém é entender o outro, se colocar no lugar do próximo. Mas o amor é confuso'', disse o padeiro. ''Acho que o amor é confuso, moço, existem muitos deles'', disse a dona do cão.''Acredito que amor é uma coisa muito abrangente pra dar uma única definição, se você me entende'', disse a mulher na livraria.
Todos os três responderam o que achavam, o que creem a respeito de tal palavra e, em momento algum assumiram o que acham como um fato. Se tal coisa tivesse acontecido, o padeiro diria ''amar alguém é entender o outro, se colocar no lugar do próximo. Mas o amor é confuso'', da mesma forma que a dona do cão diria ''o amor é confuso, moço, existem muitos deles'' e assim seria com a mulher da livraria. É claro que, como linguista, ele entende que a escolha de palavras de um falante não é minuciosa. Se tal fosse o caso, demoraríamos muito tempo formulando uma frase simples ao pensarmos nas escolhas de nossas palavras. Dessa forma, um diálogo simples de alguns minutos como: ''Oi, tudo bem?'' ''Tudo e com você?'' ''Estou! Estive pensando em você.'' ''Eu também. Poderíamos marcar de sair, o que acha?'' ''Tudo bem, te mando uma mensagem depois. Até mais.'' ''Até!''; demoraria horas para se concretizar.
Porém, é claro, não falamos o que falamos sem uma intenção, apesar de não escolhermos totalmente as palavras que usamos. O padeiro, a dona do cão e a mulher da livraria, ao serem perguntados sobre o amor, responderam como se o linguista tivesse perguntado o que eles achavam que era amor porque certamente pensavam que amor se trata de opinião, não de um senso comum ou de um conceito pré-definido socialmente.
Outro recorte que completamente encheu a mente do linguista de dúvidas é a expressão ''o amor é confuso'' presente nas duas primeiras entrevistas. Se o amor pode aparecer em várias formas, o que há de confuso nisso? Seria o amor confuso porque ele pode ser fragmentado em diversos tipos ou todos os tipos de amor são confusos porque, assim como o conceito geral que os engloba, eles também são subjetivos e, logo, indefiníveis?
Recostando-se sobre o assento de sua escrivaninha, as perguntas que se formam na cabeça do linguista deixam-no atordoado. Precisava continuar seu estudo e entender o que havia de confuso no amor, se é que havia alguma confusão nele. Respirou fundo, suspirando ao se levantar. Pegou um bloco de notas e um lápis antes de sair e continuar sua investigação pelas ruas de sua cidade.
A situação hipotética descrita acima, apesar de hipotética, traz resquícios do que se é pensado sobre amor na atualidade. Talvez não no que diz respeito às definições ou respostas encontradas pelo padeiro, pela dona do cão e pela mulher da livraria, uma vez que, como já evidenciado pelo nosso linguista, suas respostas foram totalmente subjetivas. Há, é claro, uma certa familiarização com o que foi falado. No entanto, talvez o único traço da situação hipotética que seja o mais verossímil possível é a idealização do conceito de amor.
O linguista se preocupou em analisar mais respostas antes de chegar a uma conclusão sobre o amor. Seria o amor confuso, como o padeiro e a dona do cão disseram? Se sim, por quê? As respostas parecem simples agora, não é?
O amor é confuso. Isso é um fato. Por quê?
Talvez a pergunta que o linguista deveria ter se ocupado em responder primeiramente é: as pessoas respondem essa pergunta com base no que sabem ou com base no que idealizam?
Ora, apesar de ser muito equivocado da minha parte atribuir a idealização do amor como algo que todos os seres humanos tendem a fazer, eu ainda assim vou defender essa ideia. Nós falamos sobre amor com base no que idealizamos sobre ele e isso é outro fato.
Tenho certeza que todos os seres humanos, em algum momento da vida deles, tiveram uma experiência amorosa consideravelmente ruim. Talvez até tóxica e abusiva, me atrevo a dizer. No final, quando já passaram por todos os problemas possíveis da relação e estão seguindo em frente, olharam para o passado e pensaram ''aquilo não era amor''. Mas não era amor por parte de quem? Por quê?
' É entendível que não queiramos responder essas perguntas porque acabamos revivendo uma parte de nossas vidas que simplesmente merece ser esquecida, mas é meu trabalho enfrentá-la.
Se não era amor, por que houve relacionamento? Se não era amor, por que houve sofrimento?
Agora, retirando o meu equívoco de antes, digo que é claro que talvez não tenha sido amor, mas e se foi? Se todos nós pensamos em amor de formas diferentes (o que pode ser amor pra mim, pode não ser pra você e vice-versa), se todos definimos amor com base no que idealizamos a respeito desse conceito, como sabemos distinguir se o que sentimos naquele relacionamento conturbado e cem por cento defeituoso era amor ou não?
Com essas perguntas em mente, podemos responder o que o linguista se perguntou. O amor é confuso? Por quê?
O amor é confuso porque não conseguimos defini-lo, porque ele vem de várias formas e em vários sentidos diferentes. É confuso porque não aceitamos que às vezes o amor não é saudável, porque não aceitamos que amor nem sempre será grande e intenso, porque não aceitamos que nem sempre encontraremos amores livrescos (e.g. amores de romance como, por exemplo, o CEO e a secretária, a nerd e bad boy etc) e entre muitas outras coisas. Ele simplesmente é confuso e não há definição que capte sua essência. Não há palavras e gestos suficientes para resumi-lo. Amor é o que se chama aqui e agora de amor. Amor é amor.
É imprescindível dizer, dentro desse contexto, que quando pensamos naquele relacionamento ruim, que não veio como uma experiência saudável para nós, nem sempre podemos dizer que não era amor. E se era? E se, em algum momento, antes de tudo se tornar conturbado e acabar como acabou, você acordou no meio da noite, olhou para a pessoa que dormia ao seu lado e pensou ''eu a amo''?
Se esse for o caso, como pode assumir que não é amor só porque não foi saudável? Ou como pode assumir que talvez não tenha sido amor por parte da outra pessoa?
Assim como amor é algo subjetivo, pensamentos também são. Não temos domínio sobre o que o outro pensa e sente. Se em algum momento você falou ''Fulano me ama'' é porque você acredita que ele ama, não porque sabe. Do mesmo modo que, se você já falou que Ciclano não te ama, é porque acredita nisso. Não podemos saber o que Fulano e Ciclano sentem, apenas acreditar que seus sentimentos são reais ou não.
Se toda essa baboseira jogada a esmo até agora deixou você, leitor, confuso, saiba que o universo todo está. Amor não é uma palavra cuja definição de uma única pessoa ganhará consenso universal. A minha reflexão a respeito dela também não ganhará, mas deixo-lhe pensando.
Se o linguista tivesse se perguntado se as pessoas responderiam sua pergunta com base no que sabem ou com o que idealiza, certamente teria sua resposta na hora. Nós idealizamos o amor assim como idealizamos felicidade por atribuir-lhe um modo permanente, não temporário.
O que sabemos, portanto, e não me refiro somente ao amor, é muito pouco para respondermos com convicção que refletimos sobre amor com base no que sabemos. Muitos amores não foram experimentados, muitos amores não foram nem sequer pensados por nós e mesmo assim nós os idealizamos. Obviamente que, da mesma forma que não podemos dizer que é cem por cento certo que o amor é tal coisa, também não podemos dizer que o padeiro, a dona do cão e a mulher da livraria responderam a pergunta apenas com base no que idealizam. Por ser uma resposta subjetiva, levaram em conta suas experiências, por esse mesmo motivo a dona do cão respondeu que não sabia o que é amor porque nunca havia vivenciado tal coisa.
Entretanto, a maior parte é idealizada porque não vivemos tudo. Assim como não sentimos tudo. Por conseguinte, não temos como construir uma reflexão a respeito de todos os tipos de amor e seus conceitos apenas com base no que sabemos.
Em algum momento de sua pesquisa, o linguista se depararia com uma única pergunta para qual não encontraria resposta. A dicotomia de idealização e conhecimento certamente cairia em seu colo como um empecilho para sua pesquisa, mas ele logo compreenderia que grande parte do mundo e das reflexões sobre o mundo são apenas idealizações com um fundo, background, de conhecimento. Se usarmos o exemplo da ciência, por exemplo, temos ela fundamentada em teorias que, apesar de embasadas com conhecimento, trazem algo idealizado que estão tentando provar sua veracidade e se provada, deixará de ser ideal para ser real. A única questão que o linguista jamais saberia responder é:
Afinal, o que sabemos sobre amor?

O que sabemos sobre amorWhere stories live. Discover now