Hogmanay

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O Whisky tornou-se uma companhia agradável.

O álcool inebria os sentidos. Enche o mundo de cores, sons e aromas. Era essa a válvula de escape de Alistair, principalmente em datas comemorativas. Aquelas que repetiam-se ano após ano e já o saturavam a ponto de perder a cabeça. Não queria mais um Hogmanay. Não esperava nada de lugar algum. De ninguém. Nem dele próprio. Queria fechar os olhos e ser transportado finalmente para o local que precisava estar, depois de tanto tempo. Um local em que de fato começasse de novo.

Com a mente distante, deixou o copo com whisky escorregar dos dedos e cair em seu peito, molhando a si mesmo e um pouco do sofá. Sentindo o tecido encharcar, levantou com um salto, sacudindo levemente a parte molhada do suéter. Neste momento, o whisky agiu e a sala em que estava rodou à sua frente. Alistair chegou a sorrir, tamanho baratino. Uma sensação conhecida, mas sempre melhor do que a sobriedade. Preferia viver os dias assim. Cambaleante, rumou para o banheiro, onde pode olhar uma versão embriagada de si mesmo. Enquanto limpava o suéter, olhava vez ou outra para a sua feição. Imutável desde 1746.

 Mil setecentos e quarenta e seis.  proferiu de modo enrolado para si mesmo.  O ano da derrota.  complementou, antes de enjoar e abaixar a cabeça em direção à pia. As águas congelantes das Highlands eram suficientes para causar o choque que Alistair precisava. Logo se observava novamente, dessa vez com o cabelo ruivo molhado e caindo em frente aos olhos azuis. Intacto. Desde 1746, nunca mais envelheceu. Nem mesmo um fio de cabelo branco para contar história. Alistair percorreu o mundo em busca de uma explicação plausível, mas não obteve resposta. Era imortal. Realizou o desejo de tantos cientistas e estudiosos. Conversou com muitos deles, mas revelou-se para poucos. Não por temer a morte, pois a ansiava há muito, mas não queria ser um objeto de estudo. Não poderia morrer para se livrar disso, afinal.

Tentou matar-se uma centena de vezes. Enforcado, afogado, queimado, empalado, explodido... até cruzar o caminho de Padre Rosmini. Este, sem nem mesmo conhecer sua verdadeira condição, convenceu-o a parar. Alistair sempre ri quando se recorda do argumento e percebe o quão amedrontado ainda é. Mesmo depois de 300 anos, continua a ter medo do purgatório e se de fato for eterna a sua vida, pode ser obrigado a viver para sempre e bem... ele ainda prefere a companhia dos humanos.

Talvez não seja tão estúpido o seu medo. Pois é o que é hoje, graças a um sortilégio, obra do misticismo. Jamais se esquecerá do dia que conheceu Morrigan. Uma beleza criada para esconder a crueldade em seu coração. O erro custou a sua vida, pois estava morto por dentro desde que sobreviveu a Culloden e a tantos outros combates. Viu, aos poucos, todo o mundo que conhecia desaparecer; as pessoas que amava, sumiram. Tornou-se o que mais temia: um homem solitário.

A viajar pelos séculos, fez fortuna e conheceu o mundo suficientemente bem para prever o futuro. A história é cíclica e Alistair assistiu a mais de trezentos anos de repetições. Um disco arranhado que era obrigado a ouvir, ano a ano.

Em Dornie, pelo menos, sentia-se em casa. Na moradia no topo da colina e com vista para os lagos, conseguia relembrar do seu passado. Quando era vivo de verdade. Em como adorava correr por aqueles prados e buscar aventuras. Sentia o aroma da comida da mãe de longe e seguia o rastro como um rato encantado. Eram dias de alegria, apesar da opressão que sofriam e as restrições impostas anos depois. Enfim... histórias que já não gostava tanto de recordar.

Ainda tonto, tirou os cabelos da frente dos olhos com uma das mãos e suspirou, sonolento. Sentia os olhos pesarem, mas ao mesmo tempo não queria dormir. A lembrança de que teria mais um ano pela frente o apavorava. Tirou as roupas, entrou na banheira e por lá ficou, até ouvir a explosão dos fogos do lado de fora. Tímidos, mas suficientes para avisar que havia enfim começado uma nova contagem.

Mais um 1º de Janeiro.

Vestido com o roupão, Alistair foi para a sala e parou para observar a programação na TV. No jornal, era exibido ao vivo a comemoração das pessoas em Edimburgh, no Hogmanay. Riu-se ao perceber que a alegria nem sempre era fruto da inovação. Muitos ali provavelmente faziam o mesmo ritual há anos. Foi então que a jornalista entrevistou um homem que aparentava ter por volta dos 80 anos e Alistair se impressionou com a sua alegria. Os olhos brilhavam, como os de uma criança. Foi a primeira vez, em anos, que prestou atenção em uma reportagem na TV.

Apesar de experenciar muito da vida e desejar o fim de seus dias, ainda possuía muitas curiosidades. Principalmente no que diz respeito à alegria. A ignorância era uma condição obrigatória para a felicidade? Era possível ser absolutamente feliz racionalmente? Como era possivel mensurar a felicidade? O que a definia? Como ser feliz depois de sofrer? Eram perguntas que apesar de inúmeros estudos, nunca conseguiu responder. Às vezes pensava que estava perto da resposta, mas ao fim, tudo era subjetivo. A felicidade era uma boa mágica, assim como a esperança. Sentimentos que ele não mais possuía.

Já sabia que sorrir não era sinônimo de felicidade, pois o fazia a todo tempo. Ria de um Mundo degradado. Um riso descrente, de escárnio. Seus olhos puderam observar o definhar do ser humano, a ascenção da crueldade e do cinismo. O homem tinha tudo para ser perfeito, mas falhou miseravelmente. Ele próprio falhou e fazia a mea culpa. Porém, tentava encontrar um sentido para esses 307 anos de vida.

A verdade era que Alistair estava exausto. Apesar de todo o seu conhecimento e experiência ao redor do planeta, estava sozinho. Enquanto se aprofundava em sua própria existência, percebia a contramão da humanidade, cada vez mais vazia e desinteressada. Ser não fazia sentido sem ter. Ter era obrigatório para ser. As inovações trazidas por essa geração ainda o fascinavam, mas estavam cada vez mais raras e repetitivas. Sabia que o novo era uma ilusão e que tudo se transformava, mas esperava que as transformações fossem mais... excitantes. Mais desafiadoras. Mais corajosas. Parecia estar rodeado por pessoas com medo. Medo de pensar fora da corrente, medo de parecer diferente demais, medo de se sobressair e pagar caro pela insolência. Será que não viviam novamente uma Idade das Trevas travestida de Luz?

Viajava em seus pensamentos, mas tinha um plano para colocar um fim nessa existência vazia. Na sua e de todo o planeta. Ele só precisava encontrar uma chave.

E sabia onde ela estava.

Bem... não ao certo. Alistair estudou por muito tempo, mas as pistas paravam no Norte de Portugal. Um lugar que pouco conheceu, pois não via qualquer atração. Interiorano e chuvoso, não era muito diferente de sua própria casa. Observou por alguns instantes a tela brilhante do tablet que tinha pousado no colo e conferiu sua passagem. Dia 29 de Fevereiro de 2020. Ano bissexto. Os místicos diriam que tratava-se de uma data mágica, mas Alistair limitava-se a pensar que seria uma ótima maneira de manter-se oculto. Um dia quase inexistente, fácil de esquecer. Era o ideal.

Desligou o aparelho e fitou por algum tempo um livro pousado na mesa de jantar. As páginas velhas foram difíceis de manusear, mas tinham informado o suficiente.

Estava na hora de dizer adeus.

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⏰ Última atualização: Nov 17, 2019 ⏰

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