Um dia eu li em algum lugar que as borboletas vivem apenas 24h. Fui pesquisar
mais a fundo e descobri que, na verdade, algumas espécies de mariposas vivem em
torno disso ou menos. Sua função basicamente é acasalar e pôr ovos. Após isso, elas
morrem. Achei um absurdo um ser vivo viver apenas para isso, até ver que alguns seres
humanos basicamente e resumidamente levam uma vida muito parecida.
Cheguei a tal conclusão aos 14 anos, quando me descobri gay (ou algo assim, já que não sentia atração por garotas como os outros garotos) e ouvi meus pais
dizerem que o sentido da vida era ficar adulto e criar uma família, se
reproduzindo como se fossem mariposas. Eu não era uma mariposa, como meus pais. E
mesmo que eles fossem e isso ficava evidente a cada dia, percebi que minhas asas eram
de borboletas.
Borboletas vivem algumas semanas, ou podem até chegar a um ano, dependendo
de sua espécie. Voando por aí, com minha vida de merda, procurando uma flor que eu
pudesse agarrar o pólen com minhas patinhas e depois espalhar para outras flores.
Descobri que minha vida também era patética e mecânica.
Fiz algumas "amizades" fracas, eu diria. Era sempre a mesma coisa, os assuntos
giravam em torno de relacionamentos e na futilidade de como eles se desenvolviam e
acabavam rapidamente, como um piscar de olhos. Me achavam estranho por ser um "gay
de 21 anos que nunca se relacionou ou fez sexo com nenhum cara".
Sempre as mesmas palavras e argumentos, "você é bonito", "quem não iria
querer ficar com você?", "você não precisa se fazer de difícil, os outros caras vão te
achar cu doce". "Me fazer de difícil"?, eu não queria ninguém que me olhasse por fora.
Não queria ser um brinquedinho sexual pra alguém que queria tirar minha virgindade.
Aos 18 anos, com meu primeiro beijo, não senti nada. Beijei meu melhor
amigo, a minha pessoa mais próxima, que eu gostava e que se declarou dizendo sentir um amor
profundo por mim... Apenas uma grande besteira. Após dizer que eu não senti nada com seu beijo,
ele ficou triste. Tentei não deixa-lo triste, mas ele me dizia que eu não precisava fingir
que eu me importava. Eu não estava fingindo. Eu o amava, mas não sentia desejo.
Queria que ele ficasse bem, mas ele não me queria mais por não ser recíproco.
Aos 19 ouvi pela primeira vez alguém falar sobre assexualidade. E me
identifiquei de cara. Do mundo colorido que eu pensava viver e querer me encaixar
encontrei conforto no cinza. Mais uma vez eu tive de lidar com as mariposas dizendo
"como assim você não gosta de sexo?", "Não sabe o que está perdendo", "Você tem
vergonha por seu pau ser pequeno demais? Isso não é um problema.". Bom, eu não
sabia o que era considerado um "pau pequeno", então fui assistir pornografia. Tive duas
certezas: A primeira era que meu pau tinha um tamanho normal, a segunda era que
definitivamente eu não queria meu pau em lugar nenhum e nenhum pau em lugar
nenhum meu.
O tempo passou. Aos 20 encontrei uma moça que era apelidada de Flor. E como
ironia do destino, eu que me considerava uma borboleta, encontrei minha flor. Ela era
especial. Com todas as letras, não era como as outras pessoas. Não sentia nenhum interesse em ter algo
libidinoso ou beijar os lábios dela, por mais que eu a achasse a mulher mais linda que eu
já conheci. Não pela aparência, mas pela doçura. Notei que ela era sozinha na primeira
vez que a vi. E ela não estava sozinha, estava cercada de pessoas. Mas seus olhos eram
como um céu nublado ou um vidro fosco.
Tinhamos alguns "amigos" em comum, foi
bom o destino ter feito tudo ser inevitável, ou não. Em nossa primeira conversa, ela
também percebeu. Como se pudesse ter o poder de ler mentes, me convidou para
comprar um suco e me afastar dos nossos "amigos". Ela sorriu e me disse "Você é bem
estranho, né Bruno? É como eu". Não entendi o que ela quis dizer com aquelas palavras,
mas de certa forma me senti acolhido. "Você também não se interessa muito por
pessoas", completou. Questionei o que a fazia pensar isso, ela sequer me conhecia.
"Seus olhos", disse ela, "Eles não olham para ninguém. Só para os objetos e a natureza
ao redor". Como ela poderia saber disso apenas em olhar para mim? Eu apenas sorri
confuso e respondi "Eu gosto de borboletas", e ela falou "Eu gosto das asas das
borboletas, são lindas.". Nossa primeira coisa em comum foi saber que gostávamos de
borboletas. Voltamos com os sucos, mas eu soube naquele dia que eu voltaria para casa
sendo outra pessoa.
Ela nunca me perguntou sobre pessoas. Se eu estava interessado em alguém.
Nunca falou sobre sexo ou essas coisas. As conversas dela sempre começavam com
algo inesperado. "Você sabia que na Holanda eles estão transformando prisões em
abrigos para desabrigados, pois o índice de criminalidade de lá é extremamente baixo?".
Bom, eu não sabia, mas fiquei feliz em saber. "Queria que no Brasil um dia pudesse ser
assim", ela sorriu, tirou os cabelos cacheados dos olhos e falou "Não sonhe tão alto,
borboletinha". Tenho certeza que se fosse qualquer outra pessoa me chamando assim,
eu sentiria vontade de dar um soco. Mas ela me fazia sorrir como se fosse a coisa mais
fácil do mundo.
Ela gostava do meu sorriso, eu gostava das orelhas dela. Eram pontudas e
incomuns. Ela disse que sofreu bullying na escola por causa do formato e que era
a primeira vez que alguém dizia que gostava delas. Eu disse que era impossível não
gostar de algo nela, pois ela era tão... Não sei, ela.
Passávamos madrugadas mandando vídeos de filhotes até dar sono, mesmo que
a aula no dia seguinte fosse às 8. Não demorou até que as pessoas do nosso "circulo de
amizade" começasse a falar sobre nós. "Tá virando homem, Bruno?" um dia um cara
perguntou. "Um dia deixei de ser?", perguntei desinteressado. As pessoas ao redor
tiveram uma reação babaca, e se comportaram como se eu o tivesse desafiando a ver
quem tinha a língua mais afiada. Antes que ele me respondesse, completei "Bom, nunca
me descobri mulher trans. Mas se você está perguntando sobre minha sexualidade,
continuo o de sempre". Não consegui esfriar os ares com isso, ele continuou "Você
sempre foi assim, né? Arrogante. Se achando mais do que os outros por não ser a putinha de qualquer um. Mas tenho certeza que você não é nenhuma santinha. Gente
como você, são as piores."
"Gente como você", que tipo de gente eu era? Calei, não sabia o que responder.
Claramente irritada, Flor respondeu "Você não cansa de ser idiota, né Marcelo? Acha
que esses músculos te fazem ser um cara mais interessante, mas se apoia na sua
aparência pois sabe que se alguém mergulhar aí, qualquer um pode ter um traumatismo
craniano". Nesse momento, as pessoas ao redor pareciam uma plateia se divertindo.
Cochichando, soltando risinhos maldosos, "Vai deixar, é Marcelo?". Marcelo não
deixou, continuou "Ninguém gosta de você de verdade, sabia Sabrina? Nem sei quem
deu esse apelido de 'Flor' pra você, pois nem beleza você tem pra se apoiar. É esquisita,
feia, não fala nada que faz sentido e sai por ai fingindo que a vida é bela e tal, mas todo
mundo sabe que você já tentou se matar".
Acordei com um pulo. Estava incapaz de abrir minha boca não por omissão, mas
por não saber o que falar. Não imaginava que Flor já tinha tentado tirar a própria vida. E
assim como se um rato ousasse atacar uma cobra e ter alguma vantagem, fiz uma das
coisas que nunca imaginei conseguir fazer. Antes de pensar, fui tomado por um ódio
nunca visto, foi o segundo sentimento que mais senti com intensidade. Levantei-me
do banco onde estava sentado e com toda a força que eu sequer imaginava ter, chutei a
cara daquele animal. Não uma, mas várias vezes quanto pude até ele reagir e me jogar
no chão. Minha cabeça bateu forte no chão, um zumbido forte veio de meus ouvidos e eu apaguei sem sentir nada. Acordei algumas horas depois num leito de hospital, sem lembrar
muita coisa e faltando dois dentes na boca. Flor me acompanhava, estava vermelha e
com o rosto inchado. "Eu nunca foube que Flor focê era, mas acabei de descofrir que
focê é uma rosa. Com gofas de chufa", tentei sorrir, mas minha boca doía demais. Ela
sorriu no meio das lágrimas e falou "Até sem dois dos seus dentes, o seu sorriso é o meu
preferido". Demos nossas mãos, então com a voz mais doce que ela conseguiu, se
aproximou do meu rosto, olhou nos meus olhos com uma profundidade que eu não
lembrava que alguém já havia olhado e me disse "Marcelo abriu um boletim de
ocorrência contra você, mas ele estava menos machucado que você e as meninas
deporam a seu favor. Então quem acabou detido por agressão foi ele." Ela me olhou
seriamente por uns 3 segundos até ambos cairmos na risada. Na verdade, eu não pude rir
muito, gemi mais do que sorri.
Um mês depois, passei por um implante dentário, voltei a sorrir com dois dentes
de cerâmica acrescentados. Flor estava me esperando na saída do consultório.
Dois meses depois a vesícula dela inflamou, fomos ao hospital às 2 da manhã.
Ela se operou bem no dia de São João, que tínhamos marcado de ir para uma grande
festa. Eu estive lá com a mãe dela durante a noite toda e orei junto com ela para que
tudo desse certo. Desde os 14 anos eu havia deixado de orar, mas naquele dia senti que
Deus ia fazer dar certo, com toda a minha força interior. E deu. Eu não sabia se merecia ser ouvido, mas sabia que ela merecia que me ouvissem.
Alguns meses se passaram e já era novembro. Flor me contou sobre sua tentativa
de suicídio que falhou. Ela tentou se jogar de um prédio, mas uma outra moça que havia
subido até lá para estender roupas a viu e a convenceu de não pular. Elas namoraram por um tempo, mas Flor notou que não conseguia se apaixonar como a moça e resolveu
ser sincera. Atualmente elas são amigas, mas não muito próximas. Foi a primeira vez
que ela falou sobre relacionamentos comigo. Finalmente eu entendi porquê ela disse que eu
era como ela...
Hoje foi a minha festa de aniversário de 21 anos. Dei o primeiro pedaço de bolo
a ela. Afinal, ela quem tinha me comprado o bolo. Ela estava vestida de fada, com asas
transparentes. Linda com suas orelhas a mostra, pois resolveu fazer um coque. "Não
tente voar outra vez, ok", disse eu. E então ela me respondeu "Eu criei raízes no chão,
graças a uma borboleta, acredita? Acho que nem uma tempestade me derrubaria". Sorrimos juntos naquele dia e em vários outros, durante tantos dias que perdi as contas.
Sabrina Flor era uma pessoa única. Me fez entender o que era uma amizade sem
aspas.
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Asas de Borboleta
Historia CortaVocê já ouviu falar sobre o mito de que borboletas vivem apenas por um dia? Bruno é uma borboleta que durante toda a sua vida, notou que não precisava de ninguém. Até não conseguir se ver sem a única pessoa que lhe fazia voar.