Prefácio

6 0 0
                                    

Aquele sonho surgia como o nascer do sol, trazendo luz e calor.

O fulgor do dia roubava o seu rosto e eu me hipnotizava naquela tarde de outono. O ressonar da cantiga sempre causava o irresistível desejo de não acordar.  Ele começava distante mas rapidamente enchia a minha mente, tornando-a presa, voluntariamente desarmada. 

O carcereiro nunca foi a letra, esta é irrecuperável. A voz dela era a responsável. Calma como um lago parado, linda como o gorjear dos pássaros na primavera, cheia de ternura e alegre como se brincasse com as palavras esquecidas.

Enquanto a canção perdurava eu reconheçia seus traços. Alguns deles reconhecia no espelho, longos cabelos negros e olhos púrpuras. Sua pele branca, diferente da minha bronzeada, com bochechas coradas a cada sorriso afável, faziam-lhe encantadora. 

Suas mãos gesticulando no ar incompreensivelmente moldando a própria luz, repousando, por fim, num carinho terno.

Ao final ela põe um dedo entre meus olhos e diz:
– Para que se lembre, meu pequeno doce.

Então riamos, sua gargalhada aquece-me da mesma forma que uma lareira no inverno. Nesse momento, um pensamento imaturo atravessa minha alma: qual o preço para fazer desse o meu paríso eterno? 

Infelizmente a mesma brisa que traz o frescor no verão também atraí tempestades no inverno.

Findado o riso vejo-me na escuridão, o peso da penumbra me impede de mover o corpo e uma estranha urgência abala meu coração. 

Eu rastejo tentado alcançá-la, chamá-la, preciso salvá-la. O terror inexplicável faz meu corpo tremer, gritos roucos morrem na garganta antes de chegar ao mundo e apenas as lágrimas vazam.

Tilin!... Tilin!... Tilin!TILIN!

O som de metal aflige-me, cada tilintar é como uma flecha acertando meu peito. Porém o pior eram os gritos, horrendos, ecoando um de cada vez, intervalados por rugidos e grunhidos que se aproximavam do canto escuro onde eu estava escondido.

De repente silêncio tomou as trevas. Nenhum som ecoou até o teto se abrir permitindo-me ver, boquiaberto, uma figura bestial do tamanho de dois homens, cair no chão cravejada de espadas cintilantes. Inerte, sem brisa de vida. 

Na escuridão podia-se ver apenas os olhos da criatura: púrpuras e repletos de desespero, iguais aos meus.

Murmúrios Da Ruína - Em Andamento.Onde histórias criam vida. Descubra agora