Capítulo 1: Sangue na Estrada

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O solavanco da carruagem me chutou da sonolência e, antes de poder pensar em qualquer coisa, eu estava no chão sentindo ter levado uma pancada muito forte na cabeça.

– Athos, querido. Está tudo bem com você?- a voz da minha mãe soou preocupada. Logo em seguida suas mãos puxaram-me cuidadosamente para cima.

– Sim, tudo bem. A cabeça dói mas não é nada.- falei tentado disfarçar o desconforto latejante.

Apesar disso ela insistiu em verificar se eu tinha alguma ferida ou não. Reparei que seus cabelos castanhos se soltaram do coque apertado habitual, consequência do distúrbio. Os cacheados desaguavam dos seus ombros.

– A testa só ficou um pouco vermelha.- apoiou o dedo no local dolorido, franziu a própria testa e olhou para a janela. – Espere aqui, vou ver qual foi o problema.

– Não, - me pus em pé, apesar do leve desequilíbrio.- eu consigo andar.

Ela abriu a boca para uma provável repreensão, contudo, depois de uma segunda olhada, apenas assentiu com a cabeça e desceu da carruagem.

Do lado de fora era dia, mais precisamente meio da tarde. A floresta boreal nos cercando permitia a passagem de feixes luminosos pela densa copa das árvores, um silêncio sepulcral se instalou e, fora o farfalhar das folhas, nada desejava interrompê-lo. 

A chuva recente deixara um forte odor de terra molhada. Gostei daquele aroma, me lembrava da fazenda, porém um outro cheiro estragou o clima, podre e pungente.

A orla do seu belo vestido afundou na lama junto dos seus pés, após uma breve bufada ela seguiu apressada para descobrir o que estava acontecendo.

– Owen? Ludin? O que diabos vocês pensam...- tão bruscamente quanto elevara seu tom repreensivo igualmente ele murchou.

No estreito caminho, um cavalo deitou e abandonou os últimos esforços de viver. O sangue escorria por cortes horríveis, espalhados pelo corpo inteiro e um, particularmente profundo, no olho esquerdo do animal, formou uma poça carmesim sob o dorso cinzento. Nossos garranos se inquietaram e relincharam agitados, foi necessário um pouco de força para acalmá-los.

Ludin, o cocheiro mais experiente e possuidor da maior barriga, foi o primeiros de nós a se recuperar do choque e dizer num tom soturno.

– Senhora Lorys, aquela coisa acabou de sair da floresta. Com o susto puxei as rédias rápido demais, peço perdão.- engoliu em seco.

– Não há necessidade.- dispensou num aceno suave as desculpas. – Você disse que saiu da floresta? Sabe se existe alguma fazenda perto? Talvez estalagem? O dono pode estar procurando.

– Não senhora. A última foi há quatro dias e a capital fica a apenas algumas horas, ninguém se daria o esforço de construir uma por aqui.

– Talvez tenha vindo do campo.- o outro cocheiro mais jovem comentou.

– Besteira. Ele teria de correr uma noite inteira! No máximo se perdeu de algum viajante idiota.- redarguiu o gordo.

– Não têm cela e nem ferradura. Provavelmente estava sendo caçado, os cortes...

– Chega! De toda forma é irrelevante.- o tom repreensivo da mulher recuperou forças.– Vocês tirem ele da estrada. Athos, ajude os dois.

A pobre criatura estava bastante magra e tinha perdido sangue demais, portanto arrastar o corpo para fora da estrada requereu somente umas baforadas de ar, desagradáveis por causa do odor aflitivo, e um pouco trabalho em equipe. 

Ao fim, dos meus dedos o líquido viscoso e vermelho pingava, num momentâneo instante observei-o fixamente.

Aquilo era vida, escorrendo lentamente pela minha pele. Semanas atrás pulsava nas veias daquele cavalo e agora, através de motivos desconhecidos, pintava o chão a frente.

Estranhamente esse pensamento me fascinou, talvez fosse as indagações da morte ou a agressividade do assassinato porém algo começou a borbulhava em mim, vindo das vísceras e lentamente inflamando. O sensação desmanchou quando senti um toque nas costas.

– Filho? Alguma coisa errada?- os olhos dela, amendoados sob sobrancelhas franzidas, ia do machucado na testa às mãos sujas.– Deseja descansar um pouco?

– Não. É melhor chegarmos na capital após o crepúsculo.- meneei negativamente a cabeça. – Meu pai ficará preocupado se demorarmos.

– Verdade.- concordou pensativa.– Ludin, dá pra apressar a viajem?

– Acho que sim. A estrada se abre na próxima bifurcação, além de que Caramelo e Canela - tocou os dois cavalos da carruagem - parecem doidos pra partir o mais rápido possível.

– Se apronte, partimos agora.

Subimos novamente. Dado o comando de partida, os trotes soaram abafados pela lama enquanto nos afastávamos do equino moribundo. 

Pondo o pescoço pra fora da janela, continuei buscando sua figura na margem do caminho. O montinho irregular ficando indistinto nas sombras das árvores deixou um gosto amargo na boca. Devíamos ter enterrado. Custaria tempo, precioso tempo, mas o coitado merecia algo mais apropriado.

Chegando na bifurcação o cavalo era pouco mais que uma mancha na paisagem e, segundos antes de desaparecer no canto do olhar, um grande vulto passou veloz, arrebatando-o ferozmente.

Quase torci o pescoço na tentativa de entender melhor o que acontecera, infelizmente a paisagem já havia escondido qualquer traço do cadaver. 

– Imaginação.- reconfortei-me sussurrando ao sentar espantado.– Apenas imaginação.

Eu não poderia estar mais errado.

Murmúrios Da Ruína - Em Andamento.Onde histórias criam vida. Descubra agora