Capítulo 1 - Aquela estrada

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Aquela noite de sábado estava insuportável para Igor. Por mais que ele tentasse pegar no sono, nada diminuía a sua ansiedade, nada acalmava o seu coração. Ele tentou lembrar-se do aniversário da pequena Maria, sua filha de três anos, que havia acontecido há um mês. Lembrou-se das músicas, dos balões coloridos, das risadas da filha ao cantar pela milésima vez o Baby Shark

Nada funcionava. Muito pelo contrário, só piorava.

Além da ansiedade, uma grande culpa espremia seu coração, como se quisesse destruí-lo pouco a pouco. 

Igor pensou no seu filme predileto na infância, O Rei Leão. Pensou nas cores do sol, na Pedra do Reino, cantarolou mentalmente "O que eu quero mais é ser rei" e nem isso funcionou.

Olhando para sua esposa, Laura, Igor levantou-se lentamente e calçou um par de tênis velhos. Desceu a escada passo a passo, com medo de acordar Laura. Na cozinha, havia a bagunça que sobrou do jantar, feito por ele: macarrão do tipo fettuccine ao molho de queijo com brócolis, receita que aprendeu nos tempos de solteiro quando vivia em uma quitinete minúscula. Igor comeu esse macarrão por anos e estava bastante enjoado, mas Laura parecia exausta naqueles dias, então valeu o sacrifício de comê-lo mais uma vez. Além do que, Laura adorava o sabor do molho feito com uma mistura um tanto curiosa de maionese, creme de leite, mostarda, pimenta do reino e noz moscada. 

"Como eu fiz tanta bagunça pra cozinhar?", pensou Igor, rindo de si mesmo. Em seguida pegou seus óculos, abriu a porta de casa e tentando fazer o mínimo de barulho possível, entrou em seu carro e saiu sem rumo.

De dentro do carro, com os vidros fechados e acreditando que estava invisível (sim, quando dirigia com os vidros fechados Igor sentia-se invisível), Igor ligou o som no mais alto volume e começou a cantar: "Tonight, I'm gonna have myself a real good time...". Ele não era nada afinado, mas pouco importava. Naquele momento ele só queria imaginar-se invisível, fodão como o Fred Mercury e sem nenhum problema.

Igor tinha, ao longo de seus 35 anos, uma história invejável. Sempre foi o melhor aluno da classe, em uma escola cara e exigente. Sempre foi o mais criativo e elogiado pelos professores pela sua capacidade de argumentar. Por isso mesmo, foi a escolha óbvia para herdar a agência de publicidade de seu pai, aos 18 anos. Trabalharam lado a lado por cinco anos, enquanto o pai lutava com um câncer no estômago. Após a morte do fundador, a agência ficou nas mãos de Igor 100%, o que o desestabilizou completamente. Enquanto a empresa afundava em prejuízos, Igor teve o apoio de sua amiga de infância, Laura, o que pouco a pouco transformou-se em um romance e consequentemente o casamento.

"Como eu cheguei até aqui?", pensou ele, enquanto reparava que sua vida desde então foi uma sucessão de fatos com os quais ele simplesmente concordou, sem pensar no que de fato queria. E pronto: a ansiedade chegou novamente ao seu peito, sua cabeça começou a girar velozmente e ele não teve outra escapatória a não ser gritar junto com a música: 

- Don't stop me now, I'm having such a good time!!! AHHHHH!

Apavorado, Igor freiou o carro o mais rápido que pode. 

Ali, parado na estrada, bem em frente a seu carro, estava um homem. Um homem jovem, visivelmente abatido.

- Você está doido, cara? Eu podia ter matado você! - Gritou Igor, num misto de fúria com medo. Afinal, aquela estrada era tão vazia e escura, ele podia realmente ter atropelado o rapaz.

Sem resposta.

- Hei, estou falando com você. Se você ficar parado aí, sem falar nada, alguém vai acabar te atropelando. Você é louco?

...

Igor com certeza não esperava aquilo, em uma noite tão estranha. Ainda mais naquela estrada, na qual ele passava todos os dias para ir até o centro da cidade. Com a falta de respostas, Igor estufou o peito e mesmo com medo de toda aquela situação, saiu do carro e caminhou na direção do rapaz.

Dois PontosWhere stories live. Discover now