Eu a vi através da vitrine, lá dentro, naquela loja de roupas tão aleatórias que mais parecia um brechó. Ela estava com o cabelo preso e um vestido azul. Sua cor preferida. Deu um sorriso doce para o vendedor que a atendia, dos mesmos que costumava me dar e, por um instante, ao se virar em minha direção, pensei que havia me visto; mas não, apenas caminhou para mais adentro da loja. Talvez fosse ao provador, já que segurava algumas peças em mãos.
E que bom que não me viu.
Aquela nova roupa bem podia ser para alguma comemoração. E se ainda estivesse solteira, desde o nosso término, provavelmente conheceria uma pessoa bacana por lá. Os dois passariam a noite juntos, conversando e trocando sorrisos. Uma amiga em comum os deixaria ainda mais próximos, e certamente os convidaria para vários outros eventos. Logo, estariam namorando, e pouco depois um noivado. Quando visse, uma casa grande, duas crianças e três cachorros. Um momento ou outro acabariam discutindo, a relação poderia ficar abalada, mas voltariam um para o outro. Ele a faria feliz, sei que sim.
Ela saiu da loja e desapareceu na esquina.
Em casa coloquei algumas roupas numa mala usada que o zíper não queria fechar. Dois pares de sapato pretos, e uma gravata que recebi no primeiro casamento. Não, não sou casado, é o de um amigo. Falando nele, nem se quer sei por onde está. Se mudou de cidade? Ou fui eu que perdi o contato, me afastei e me excluí de seu convívio? Terá sido intencional? De qualquer forma, havia um bom tempo que eu não o via, e a considerar a sua fama, bem podia estar divorciado a essa altura. Na infância jogávamos bola no campo perto de casa e na adolescência ele sabia boa parte dos meus segredos, das minhas fugas de casa a noite e do quanto aprontava. Mas nunca revelou nada, ao menos até onde sei, e os seus segredos morreriam comigo. A confidência se perdeu junto com o convívio, e a necessidade de proximidade no embalo. Se se lembrasse de mim agora seria só uma memória afetiva do passado, "ah, que saudade", diria e só, depois voltaria a sua vida comum.
Ele desapareceu, assim como a garota de vestido azul, só que em outra esquina.
Eu estava para fechar a janela e sair do quarto quando, lá embaixo, da vista do alto que a janela do meu quarto me permitia, pude ver duas senhoras sentadas em um banco, logo abaixo de uma árvore. Pareciam tecer um assunto bastante interessante, e secreto, já que as duas falavam baixo próximas uma da outra, enquanto deixavam escapar alguns sorrisos. Seus cabelos parcialmente grisalhos, vestidos floridos, e sandálias de couro não me deixava me enganar. Minhas tias, as duas mães que me criaram. Será que sentiam a minha falta? Claro que sim. Estava para nascer alguém que me amava mais do que elas. Pra ser sincero, todo mundo diz que nos ama em algum momento, mas no fundo sabemos qual é de verdade.
- As vezes é só carência, cuidado! - me diziam elas, depois de um copo de chá de erva-doce e broa de milho.
Já estavam em uma idade avançada, e me doía pensar que eu poderia voltar a abrir a janela e não vê-las mais lá. Ou passar por aquele banco e se quer sentir o cheiro costumeiro de perfume importado que as duas viviam comprando na feira do bairro.
Tranquei as janelas. A vista do banco, da árvore e das minhas tias sumiu em um instante.
Desci as escadas do meu quarto, tomei dois copos de suco, passei a mão duas vezes no santo que estava sobre a mesa da sala, e peguei minhas chaves. Da minha casa até a rodoviária não era muito longe. Cerca de 10 minutos. O problema eram os sinais, e por vezes, as pessoas que encontramos parado nos sinais. Na calçada, do outro lado da rua, um grupo de jovens vestidos com o mesmo uniforme verde-água, caminhavam tranquilamente, tomando os seus cones de sorvete. Três do meu trabalho e um provavelmente novato. Seria para o meu lugar? Mas se quer sabiam que eu havia saído ainda. Não é como se notassem a minha presença por lá. Eu ficava a maior parte do tempo no meu canto, fazendo as minhas coisas e conversando com a minha planta de cacto sobre a minha mesa de serviço. Ainda sim, há quem diga que, por vezes, se espelhavam em mim. Nesses momentos, confesso, minhas bochechas coravam, estufava o peito e abria um largo sorriso; mas isso logo passava quando o primeiro problema surgia e de repente, todos desapareciam. Ou eu é que me escondia?
O sinal abriu e o meu caminho também, de modo que os deixei para trás. Os deixei junto com o meu trabalho, e os meus costumes do trabalho. Junto com a minha carga horária estressante e o meu chefe que só fazia reclamar. E junto também com a fatídica verdade de que eu nunca conseguiria viver daquilo que realmente me fazia me sentir bem: cuidar de uma horta de cactos.
Na rodoviária, a fila para comprar passagens pareceu demorar uma eternidade. E as vozes das pessoas eram como um milhão de passarinhos cantando ao mesmo tempo sob a fiação, só que extremamente desafinados. Não é recomendável que pessoas com o ouvido sensível frequente lugares como esses, e que pessoas sensíveis visitem lugares. Enquanto as pessoas não aprenderem a se comportar, pode ser um pouco assustador. Ou eu é que tenho que aprender a fazer barulho?
Fiquei cerca de duas horas aguardando o ônibus no terminal, com a mala no chão e um senhor do meu lado vendo o jornal a maior altura e sorrindo duma reportagem de tragédia. E, quando menos esperava, a última pessoa que eu queria ver naquele momento, estava lá, de bermuda jeans, cabelo solto e blusa regata vermelha, há... e também com a pulseira que eu a havia dado de presente, por nossa amizade.
Dias antes uma pessoa próxima a ela havia me contado algumas coisas:
- Ela disse que é para te proteger - revelou.
- Proteger? Mas como se protege alguém estando longe?
Fiquei chateado por demais com a situação. Mas confesso que nada fiz para mudar. Por vezes você dá tanto o braço a torcer que ele desloca e um osso se quebra ao meio.
Como uma memória leva a outra, me peguei pensando em uma coisa que um antigo amigo da escola havia me dito anos atrás, depois de bocejar longamente e dar dois espirros.
- Cara, se parto uma laranja e te dou um pedaço, ela fica incompleta. O mesmo é com as pessoas. Se alguém precisa tirar um pedaço de si, para completar o outro, você fica bem, mas essa pessoa fica quebrada. E aí, como que faz? Vira uma bagunça. Volta lá, vocês precisam conversar.
Eu e ela tínhamos discutido, uma das primeiras vezes. Voltei e pedi desculpas. Na outra vez ela é que pediu, e assim seguimos. E as coisas foram melhorando, e piorando ao mesmo tempo. Se perguntar, ninguém sabe dizer o que aconteceu.
Até termos uma discussão em que os dois passaram do limite.
- Eu quero que você desapareça da minha vida! - ela gritou, e se eu não houvesse segurado suas mãos teria me dado alguns tapas também.
- Se acontecer alguma coisa comigo, você vai se lembrar de todas as vezes que me pediu para ir embora, e vai chorar, porque eu não vou mais estar aqui. E isso não é a porra da minha autoestima, é a verdade.
Sei que doeu. Por vezes dói.
Depois disso ela se trancou. Colocou oito trancas em sua porta invisível e jogou as oito chaves no rio, logo abaixo da ponte. Quem quer deixa a porta aberta. Nós morávamos a dois quarteirões de distância, mas é como se o oceano pacífico estivesse no meio. E nenhum dos dois parecia disposto a nadar tanto.
Mas eu acabei me encontrando com ela na estação. Bom, não encontrando de fato, já que não chegamos a nos cumprimentar. Mas ela estava lá, com uma parente, ou uma amiga, não sei. Cidade pequena as pessoas se esbarram facilmente. E aparentemente longe de derramar lágrimas por minha ausência.
Finalmente o ônibus chegou.
Não tinha letreiro, então não sabia para onde ele iria. Mas eu entrei. Sentei na poltrona do canto, um assento confortável e com vista para a rua. O ônibus ligou e a vida começou a se movimentar mais rapidamente lá fora. Cada vez mais. Como se o relógio estivesse correndo contra ele mesmo, sabendo que a primeira hora jamais seria a mesma, e tudo o que foi vivido nela, também. As pessoas, as coisas, as pessoas e as coisas. Transformando-se lentamente, e morrendo. Eu sabia que, se retornasse, a minha casa não seria mais minha. A garota de quem eu gosto estaria com outra pessoa. A minha melhor amiga estaria com outro melhor amigo. As minhas tias já teriam partido.
Vislumbrei o mundo pela janela.
Fiquei abismado ao perceber que a rua estava vazia. O bairro estava vazio. A cidade estava vazia. E o mundo vazio também. Não havia ninguém em lugar algum. Em um instante todos estavam ali, e noutro... desapareceram.
Mas no fundo sei, fui eu que, pouco a pouco, desapareci.