Mais uma vez o chicote estalou ao longe de seu quarto. Os gritos abafados do escravo ainda eram audíveis dali. Marcella não conseguia se acostumar com aquela cena, que para sua mãe e irmã, era normal e até cotidiana.
Havia vivido toda sua infância em um convento incrustado na montanha suíça, e ali não viu algo como aquilo. Era desumano, monstruoso e desleal. Totalmente contrário ao que aprendeu com as irmãs do internato: amor a Deus, ao próximo, e a natureza.
O pobre rapaz só lhe havia confidenciado, na noite anterior, que achava seus olhos azuis tão bonitos quanto o mar de sua terra natal. Um comentário respeitoso e saudosista, mas que para seu futuro marido, era um ultraje que merecia vinte chicotadas como castigo.
Cobriu o rosto com as mãos enluvadas, ao escutar mais uma vez o chicote dilacerar as costas largas do rapaz. Estava chorando copiosamente, enquanto sua mãe tomava chá numa delicadeza mordaz em sua louça chinesa, e sua irmã mais velha tentava acertar um ponto de seu bordado elaborado no tecido de algodão cru do quadro bastidor.
Seu casamento aconteceria em breve, afinal era por isso que estava ali na fazenda dos pais. Seu futuro e odioso lar. Não porque fosse um lugar ruim. A natureza aberta, as plantações de café e laranja, os animais soltos e trabalhadores rurais, eram um cenário fantástico e convidativo. Entretanto, o que não combinava com todo aquele ambiente era a escravidão que seu pai insistia em manter.
Homens, mulheres, crianças e anciões negros, pardos e morenos, que tinham em seus pés e pulsos, os grilhões da escravidão. Em suas costas e pernas, as marcas das chicotadas, e em seus corações a dor da falta de humanidade de seus senhores. Senhores estes que deveriam proteger e liderar, mas que preferiam destruir e subjugar.
Em seu coração, Marcella prometeu a si mesma que não importava o que tivesse que enfrentar, lutaria contra aquilo. Ensinaria seus filhos e filhas a odiarem aquele ato. Lutaria até a morte contra aquele sentimento de conivência com tão brutal atitude social. Colocou a mão fechada em seu colo esquerdo, acima do coração e jurou em silêncio, de olhos fechados.
**
Seis meses depois...
**
O casamento havia virado notícia em toda a cidade, que por ser pequena, comentava animadamente por toda a semana aquele evento tão importante. A filha mais jovem do comendador se casaria no casarão.
Todas as damas estavam vestidas em suas melhores indumentárias, com chapéus pomposos, luvas delicadas, sapatos brilhantes, sombrinhas combinando com vestidos e espartilhos. Os cavaleiros em seus ternos, coletes, calças e sapatos. Muitos com suas cartolas e chapéus caros. Era o casamento do ano.
Mãe e irmã da noiva estavam ansiosas com a aparição da mais nova. Ela havia se isolado há três dias do casamento, com as amigas do internato que haviam chegado de viagem da Europa só para participarem do casamento. Não haviam conseguido ver o tão esperado vestido de noiva que a jovem solicitara, meses antes, do outro lado do mundo. Estavam curiosas com todo aquele segredo.
O padre já estava reunido com noivo e pai da noiva, no grande salão. A escadaria em que a noiva desceria para se apresentar a todos, estava disposta bem atrás do pequeno púlpito decorado com flores brancas e amarelas. Todos os convidados já estavam sentados em seus bancos de madeira maciça, ao redor do púlpito.
O noivo se portava ao lado do futuro sogro como uma grande celebridade a se apresentar num teatro. Seus pais, ansiosos pelo enlace e participação nas riquezas da jovem, não cabiam em sorrisos e orgulho.
O pianista, esquecido no cantinho próximo a escada, começa sua deixa no teclado do piano de cauda em madeira vermelha brilhante, e toca lindamente a marcha nupcial, alertando os presentes de que a noiva estava pronta. Todos se levantaram e aguardaram, observando curiosos o alto da escadaria.
As damas de companhia desceram primeiro, ambas vestidas em vestidos delicados e brancos. Em mãos, buquês de flores brancas e amarelas, compostas de lírios, lisiathus, rosas e crisântemos.
Quando a noiva surgiu, uma comoção geral tomou o salão, em que muitos soltavam interjeições de surpresas, até todos caírem em silêncio total. O noivo não sabia como reagir ante aquela inusitada e comprometedora cena.
A noiva não se importou com os rostos lívidos da mãe e do pai, o deboche demonstrado no rosto da irmã, ou a surpresa de todos no salão. Continuou a descer com delicadeza e altivez de noiva.
O longo vestido tinha todas as características de um vestido belo em estilo princesa da época. Um gigantesco véu transparente, uma tiara que o segurava, uma saia pomposa com camadas de véus delicados, um corpete perfeito e justo ao corpo curvilíneo da noiva. Somente uma coisa era diferente: a cor era totalmente preta.
Até a maquiagem a noiva teve o cuidado de manter o mais escura possível, os lábios num vermelho forte. O buquê tinha rosas vermelhas tão vivas, que pareciam sangrar nas mãos enluvadas – luvas pretas – da noiva. Uma beleza incrível e chamativa, que não passaria batida nos jornais da pequena cidade. Até o padre não sabia como tratar aquele incrível desafio. Ninguém duvidava da pureza da noiva, mas qual não seria o falatório sobre aquilo?
Ao chegar ao lado do noivo, Marcella sorriu e com calma pediu ao padre para que iniciasse o casamento. O pianista recobrou vida e reiniciou a marcha, com um sorriso largo em seu rosto. Era um amante da causa abolicionista e entendeu completamente a mensagem passada.
** FIM **
*****************************************************************************************************
Notas da Autora
Texto que criei para o dia 20/11, em memória a todos os homens e mulheres de bem, que sangraram em nosso solo para construir nosso país. A única culpa deles: serem negros!
Que lutemos para que jamais volte qualquer tipo de escravidão, seja pela cor da pele, pela religião, pelo gênero e etc. Que não permitamos em nosso seio, sentimentos de conivência com atitudes desumanas e desrespeitosas com a vida!
Obrigada pela leitura! Votem e comentem este meu humilde texto que vos entrego! ;)
JJ
Fonte da Imagem: https://images.app.goo.gl/6QaG873qrwggYn6h9
YOU ARE READING
O desafio da Noiva
RomanceMarcella não era uma heroína em seu mundo, somente uma noiva que não concordava com a situação atual de sua sociedade! Uma pequena homenagem a todos as pessoas que lutaram contra essa monstruosidade, conhecida como escravidão. Aqui considero a escra...