Quantas vezes eu olhei para eles e nem mesmo me remeti a ela. Os lírios. Mas hoje vi um que me fez ter um turbilhão de memórias simultâneas a seu respeito. Hoje vi um lírio azulado.
Nós corríamos livres pelos bosques, andávamos pela cidade, explorávamos coisas antigas, vivíamos juntos assim como imãs vivem. Lembro-me de quando fomos para uma cidade colonial a alguns quilômetros da nossa, ah bons tempos eram aqueles, nós nos apaixonamos pela cidade, as ruas com seu paralelepípedos e pedras colossais, as casas com suas cores psicodélicas vibrantes como néon, os restaurantes vazando seus odores de camarão, peixes exóticos e ostras, tudo aquilo nos deixou hipnotizados em um nível inimaginável, era tudo tão diferente de nossa rotina cinzenta e monótona, como foi bom, porque meu coração insiste em sangrar enquanto me lembro daquela época, por que aconteceu com você?
Naquele dia eu despertei mais cedo do que o habitual, íamos a um festival de produtos de diferentes regiões do país que vinha anualmente em nossa cidade, sempre íamos lá todos os anos, era fantástica a quantidade de aparatos e coisas minunciosamente belas que viviam nas tendas, hipnotizando quem passasse com sua beleza surreal, uma pena que nunca adquiríamos nada.
Nos encontramos naquela manhã na frente da velha catedral da cidade e então partimos rapidamente em direção ao festival, e pela primeira vez em anos algo incrível aconteceu. Nós encontramos em uma tenda de produtos antigos um pequeno livro de botânica por um preço baixíssimo, aquilo nos deixou atônitos e enjoados de felicidade, não resistimos e de tanto suplicar para nossos pais acabamos por adquiri-lo.
Passamos manhãs e tardes inteiras saboreando o delicioso recheio que o livro possuía. Nele constavam plantas incríveis e exóticas, como a flor-cadáver, a orquídea fantasma e tantas outras com nomes impronunciáveis para nós, mas uma em especial a enfeitiçou de uma maneira sobrenatural e fantástica. Um lírio de tonalidade azulada meio esbranquiçada.
Ela me disse que sua simplicidade era a causa de sua exuberância, era algo que ela era incapaz de transmitir a mim por meio de palavras.
Acordei então na fatídica manhã, estávamos na praça comprando alguns doces em uma pequena loja com o dinheiro que havia sobrado de uma ida a padaria recente, começamos a caminhar e nos sentamos em um dos muitos bancos lá presentes, nos esbaldamos em rios de açúcar, ela estava se esforçando para abrir um pacote de paçoca, eu me ofereci para ajudá-la, peguei o pacote de sua mão e o abri com uma pequena dificuldade, quando fui lhe entregar seus olhos estavam congelados em algo do outro lado da rua, no inicio me espantei mas logo vi.
Em frente a uma velha casa destruída pelo tempo, com seu muro descascado e invadida por plantas de todos os tipos, repousavam inocentemente os lírios azulados, eles pareciam alheios a toda a destruição da velha casa, como seres puros no meio de um mar de outros terríveis e hediondos.
Nós saltamos, vazando felicidade por todos os lados de nossas inocentes almas infantis, começamos a correr alucinados na direção das plantas azuladas, chegamos na rua e então. Um clarão. Escuridão.
No outro dia acordei espetado por agulhas em um hospital, com uma nefasta dor de cabeça, minhas pernas decidiram dormir eternamente, e meu braço esquerdo estava fraturado, então algumas horas depois recebi a notícia que rachou minha pueril alma para sempre.
Lembro-me até hoje do outro dia, do cheiro forte de grama, do céu acinzentado e depressivo, das muitas covas me encarando com tristeza. Em seu enterro depositei sobre sua lápide suas flores preferidas. Os lírios.
YOU ARE READING
Lírios
Short StoryUm conto psicológico que acompanha as melancólicas e deprimentes lembranças da infância de um garoto, revelando aos poucos seu passado trágico e doloroso.