OLHOS APAGADOS

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Para a Criatura Fantástica que

conheci como meu pai.


"Então a escolha é sua.

Quantos pecados podem ser seus?

No meu reino, a escolha final

É sua!


Você pode levá-los

A qualquer hora.

A próxima coisa que vou pedir:

Tudo que você tem a fazer é sangrar."

(Grim Reaper – See you in hell)


Sonhei com o meu pai!

Vou te contar, antes que se torne apenas uma vaga lembrança.


Estávamos em nossa chácara na zona rural de Mairinque, no interior de São Paulo e meu pai estava preocupado com algo. Coisa estranha, porque era um cara "cuca fresca".

Ele adorava estar naquele ambiente com pássaros cantando livres, cobras rastejando pelo mato, tatus cavando seus tuneis e os cachorros do Seu Estevão querendo caça-los em seus buracos.

Insetos barulhentos, vaga-lumes voando na escuridão da noite no mato e até uma jaguatirica que dava o ar da graça de vez em quando, mostrando a cara por detrás de alguma árvore.

Ele contava tudo aquilo para nós com uma alegria quase infantil.

Amava aquela gente simples que cumprimentava todo mundo, "semi-tirando" o chapéu, sem pressa de terminar os assuntos, e reverenciava os muitos eucaliptos colossais rangendo, esfregando-se uns nos outros, farfalhando suas folhas cheirosas, que "dá um xarope daqui ó", dizia ele, com seu jeito descuidado de falar.

A chácara era num morro, com um barraco de madeira erguido no meio dele. Uma escada cavada na terra nos levava até ele, alguma plantação, um poço mais acima e o banheiro que era uma estrutura de pau-a-pique, com uma fossa cavada no chão, coberta por uma plataforma de madeira com um buraco no meio e um lençol velho como porta, era lá que fazíamos as necessidades.

O desejo do meu pai era construir uma casinha para passarmos finais de semana, a semana toda, o mês, a vida toda por lá, mas ficou só no desejo.

Aquela foi a primeira vez que minha mãe e eu passamos um final de semana lá.

Caiu uma chuva forte e inesperada naquela noite. A água escorreu por dentro do barraco e a cama-beliche começou a afundar na terra molhada.

Meu pai mandou que fossemos para a parte de cima da cama-beliche, ajudando-nos a subir para não sujarmos os pés. Pegou a enxada e cavou um canal no meio do barraco, por onde a água escorreu e saiu pelo outro lado.

De repente vi ele sair no meio daquela chuva grossa e barulhenta, a passos decididos que afundavam na lama, segurando firme a enxada com as duas mãos.

Minha mãe me abraçou preocupada, gritando para que ele voltasse.

A porta ficou aberta e o vento frio apagou o lampião, fazendo-nos sentir medo do que havia dentro do escuro.

Ouvimos um estalo do lado de fora, como uma madeira quebrando e a chuva parou.

Logo meu pai entrou e ouvimos sua respiração ofegante e os passos molhados.

Fechou a porta e sem esbarrar em nada, riscou um fósforo, que iluminou seu rosto assustado e acendeu o lampião.

Sentou-se na cadeira perto da mesa, estava encharcado e trêmulo. A agua pingava da aba do seu chapéu e a cadeira afundava na terra molhada.

OLHOS APAGADOSWhere stories live. Discover now