Um trovão ribombou no céu escuro e nublado ao mesmo tempo que o despertador declarava que acabou a hora de dormir. O cansaço somado ao peso da rotina pesavam em meus ombros como um fardo. Sentei na cama morna e um vento frio entrou pela fresta da janela. Os pelos do meu corpo respiraram ao mesmo tempo que a brisa e um arrepio seco subiu pela espinha. Um bocejo exausto saiu dos meus lábios ressecados.
- Que seja um dia bom... – murmurei sonolentamente, como de costume.
Fazer café nunca foi tão difícil. Não saberia explicar o motivo, mas uma preguiça excessiva se apossara do meu corpo aquela manhã. Banho. Talvez fosse disso que o corpo precisasse. Algo para acordá-lo, e logo, pois já estava trocando o açúcar pelo sal.
Arranquei o pijama salmão surrado e encarei o espelho. "Meu Deus". Estava uma bagunça. Os cabelos curtos e desgovernados em volta das orelhas traziam para lembrança um personagem de desenho animado mal projetado. Os olhos? Talvez não fosse de extrema necessidade descrevê-los, mas estavam parecidos com buracos escuros, tão preguiçosos e exaustos. Círculos negros faziam com que eu parecesse muito mais pálida e mais velha do que realmente era. Olheiras, de fato, assustadoras. Abri o chuveiro, esperei a água esquentar e deixei o corpo relaxar enquanto me perdia no vapor.
Após alguns minutos, a aparição no espelho já não era a mesma. Os fios desengonçados e escuros pareciam um pouco mais ordenados e os olhos castanhos um pouco mais abertos. Tudo se encontrava melhor. Agora eu poderia seguir para o trabalho e torcer para as horas "voarem".
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O ônibus até poderia ser silencioso, se não fosse o som dos motores engasgados com a embreagem desregulada e o rádio do problemático motorista que nos contava as boas novas daquela manhã nebulosa. Quando a voz no alto falante começou com as notícias, percebi que não eram tão boas assim.
"Agora são 06 horas e 36 minutos na cidade Vale, São Paulo. Vamos para as notícias recentes. Mais de 500 casos foram registrados apenas ontem. Há um crescimento de 200% de infectados pela bactéria que, agora, foi batizada pelos cientistas de: Brain. Leva consigo uma referência a um dos primeiros vírus operacionais criado em toda história. Diferentemente do Brain de 1986, que era pacífico e levava até o endereço e telefone de seus criadores, este Brain, com o qual estamos lidando desde o final de 2020, e que, por ora, não há informações de sua origem, é uma bactéria extremamente agressiva, que perdura há 4 anos, e que está causando uma catástrofe biológica incalculável no mundo e até para a pequena Vale, que é uma cidade projetada no Brasil, que hoje tem uma média de 70 mil habitantes. A empresa de antibióticos, LCosmic Ltda., encontrada na mesma, recebeu uma verba de R$65 milhões da Organização de Pesquisas Cientificas do Brasil em parceria com a ONU, para avanços farmacêuticos que possam, de alguma forma, mostrar eficiência contra o Brain. Há informações, também, de que um homem chamado Daniel Silveira, de 36 anos, casado e pai de duas filhas, cidadão de Vale, desapareceu esta madrugada. O boletim de ocorrência foi registrado às 01 horas e 03 minutos por sua esposa, na Delegacia da cidade. Angela, de 32 anos, diz estar preocupada, pois o mesmo demonstrava-se agressivo, agitado, depressivo e desconexo dias antes de seu desaparecimento. Falava sozinho e se perdia em seus próprios diálogos e devaneios. Descrições claras de alguns dos sintomas principais do Brain. As autoridades estimam que há chances de 80% de que Daniel e sua família possam fazer parte dos Brainers agora, tornando-se parte das estatísticas. As autoridades pedem que se alguém vir ou souber quaisquer informações sobre Daniel, liguem imediatamente para o PADE (Pronto Atendimento de Emergência), para que possam recolher os infectados o quanto antes. Agora vamos ao clima..."
Daniel era um colega de trabalho e o ônibus que trafegava com esse medíocre rádio cheio de ruídos pela rodovia 185km, estava indo para LCosmic. Éramos funcionários da L. há cerca de 3 anos. Particularmente, costumava não ser próxima de Daniel, mas sempre que o via em horários livres aparentava um comportamento passivo, estilo "paz e amor". Os olhos dele sempre foram preguiçosos, assim como os meus eram. Eles eram levemente tristes, mas lhe davam uma aparência zen. Como quem até sente muito mas não tem energia suficiente para lidar com nada, então apenas rema com a maré.
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DIA ZERO
Science FictionUma sirene. Uma confusão. Uma doença. Será que a luta pela sobrevivência vale mesmo a pena?