Decência

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  Parte de mim tudo aquilo que se inicia. As pessoas não sabem tudo o que sei sobre elas. Almoço de quinta. Enquanto as observo empunhar um garfo farto de comida diante a boca, algo cresce dentro de mim. Com meus cotovelos apoiados sobre uma mesa de madeira com pernas bambas que não tocam o chão, vejo um homem atravessar o centro de tudo, dos corredores, das mesas e das pessoas, com uma calça larga ilustrada com letras do alfabeto japonês, e assim lembro da minha língua alcançando o oriente de um corpo qualquer.

  Olho para o teto e parece tão longe. Inalcançável. Quantas cadeiras são preciso colocar uma em cima da outro para chegar ao céu? Eu nunca chegaria perto. Não preciso e nem quero. Ao contrário, prefiro estar com os pés firmes na terra, pois adoro quando meus sapatos brancos ficam sujos de lama, me lembram os dias em que montei em um cavalo. Era tão manso e educado. Mais do que qualquer dia serei.

  "Te falta decência" ele me disse e foi como um tiro na garganta. Talvez aquele dia, em que deixei as janelas de casa abertas e tirei minha roupa por completo, sem deixar nem sequer o relógio de pulso, fez ele pensar dessa forma. Ou o dia em que pedi um tapa na cara e que entrasse mais fundo em mim, tenha o assustado. Fora isso, só poderia ter sido o dia em que cravei meus dentes na língua de outra pessoa. Um corpo qualquer.

  Fico remoendo e revirando isso em meus neurônios e tripas. "Quando me tornei uma indecente?" penso eu. Retomo a atenção às pessoas ao meu redor, observo suas roupas, seus penteados e costumes. Vasculho com os olhos uma sola de sapato desgastada e finalmente encontro ao olhar para o fundo da sala. O dono, cabisbaixo e vestido como um defunto, enquanto faz sua refeição do meio dia, percebe eu o encarando e involuntariamente escancara os dentes na tentativa de um sorriso mergulhado em vergonha. Sorrio de volta, mas minha atenção ainda está centrada na sola de seus sapatos, me fazendo pensar por onde ele já teria andado, tropeçado e desmoronado. Avistei um pouco de lama em seus cadarços e logo concluo que talvez ele também possa ter montado em um cavalo algum dia.

  Me levanto de minha cadeira, como uma serpente venenosa que não recua de nada que a ameace. Sem vergonha. Ainda com os olhos cravados em seus pés, me aproximo desse homem que agora já havia engolido seu sorriso, e talvez até mesmo os seus dentes, agora estava com um semblante confuso. Me sentei ao seu lado.

  - Meu nome é Hilda. – Me apresentei.

  Sua boca se abre em um lento e calculado movimento. "O que ele irá dizer?". Enquanto o observo pousar seu garfo farto de comida sobre o prato, algo morre dentro de mim. 

DecênciaWhere stories live. Discover now