Felicidade Clandestina

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Ela era corpulenta, baixinha, sardenta e de cabelos bem crespos, meio ruivos. Tinha enormes bochechas, enquanto todas as outras meninas, inclusive eu, ainda éramos meio achatadas. Além disso possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Que sorte tinha ela, ter um uma livraria embaixo de sua casa. Mas Pouco aproveitava essa casualidade da vida. Se eu tivesse um pai empresário do ramo literário, eu seria a criança mais feliz desse mundo todo.

Clarice, tinha uma malicia no olhar. Nunca me deu de presente livro algum, mesmo sabendo do meu fascínio e amor pelas páginas e capas duras daquelas obras que enchiam as estantes de sua casa. Mas que belo talento tinha para ser crueldade. Ela toda era pura maldade, chupando balas com barulho no corredor da escola. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas. Comigo ela exerceu com calma, uma vingança: não emprestava livro nenhum. Em sua esperteza, sabendo da minha ânsia de ler os livros que ela tinha em casa. Eu nem notava as humilhações a que ela me submetia, e eu ingênua continuava a implorar-lhe que me empresta-se os livros que ela não lia.

Até que, em um belo dia, veio até mim, para começar a exercer uma tortura. Ela me informou que possui em casa, Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro Vasconcelos.

Era um livro maravilhoso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. Eu passaria horas abraçando-o, e cheirando suas páginas. Foi então que ela me disse:

- Passe pela minha casa amanhã, que eu lhe emprestarei ele.

Eu voltei para casa radiante. Até chegar o dia seguinte, eu me transformei na criança mais feliz do mundo. Eu era a própria alegria. Naquele dia, eu não andava, eu nadava nas nuvens de tão leve que estava. Eu era levada e trazida, em um vento doce e feliz.

No dia seguinte fui à sua casa, correndo. Ela morava num sobrado como eu. Gritei, e ela desceu. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, triste, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Maceió. Eu estava sendo guiada pela promessa do livro. O dia seguinte viria.

O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Ela me disse calmamente:

- O livro ainda não está comigo. Volte amanhã.

Sorrir. Um sorriso decepcionante. A ansiedade tomava conta de mim. Mal sabia eu que nos outros dias, no decorrer da semana, a frase o "dia seguinte" ia se repetir.

E assim continuou. Eu ia diariamente a sua casa, sem faltar um dia sequer. Eu chegava em frente ao sobrado, à chamava, Clarisse descia, e falava que o livro ainda não estava com ela, que eu voltasse no dia seguinte. Às vezes ela dizia:

- Pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que emprestei a outra menina.

Eu já começara a adivinhar que ela me escolheu para sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando a gente aceita sofrer, na esperança de um dia tudo mudar.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa ela dizer que não estava com livro, apareceu sua mãe. Uma mulher alta, branquela e magra, com seu avental de plástico florido. Ela devia estar estranhando a minha visita muda e diária na porta da sua casa.

- O que está acontecendo, Clarice? Quem é essa menina? - Ela perguntou.

Clarice olhou pra mim com um olhar aflito, e depois se voltou para a mãe. Houve uma grande troca de olhares, até que nos duas de uma só vez começamos a falar, entrecortando uma a outra. Até que a mãe de Clarice, esposa do dono da livraria entendeu. Ela voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou:

- Mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

Eu olhei para a mãe de Clarice, e vi no rosto uma descrença, um olhar doce, mas incrédulo. O pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia entre mim e sua filha, devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha.

Depois de alguns segundos, ela refez sua expressão, voltou ao que era antes, uma mulher cansada dos serviços domésticos. Olhou firme para a filha e disse:

- Você vai emprestar o livro agora mesmo.

Ela se voltou pra mim:

- E você fica com o livro por quanto tempo quiser.

Quando eu ouvir aquilo, me veio uma felicidade que me subia dos pés até a cabeça. Vocês entenderam o que ela disse? Valia mais do que me dar o livro: ''pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Eu estava em êxtase, e assim que recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, apertando-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Meu sorriso era quinze para as três.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não tinha livro algum, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa. Adiei ainda mais a leitura, indo comer pão com manteiga. Fingi que não sabia onde guardara o livro, horas depois o encontrava, abria-o por alguns instantes, e fechava. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Eu dormia, acordava, aquela sensação de pertencimento continuava.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, só o admirava em êxtase puríssimo.

Comecei a ler dias depois.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

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