Gado

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Gado.

Numeroso e sem individualidade, eram apenas carne com consciência que o abate se aproximava. A marcha era penosa; não mais que um rastejar desanimado de corpos e almas quebrantados pelo chicote. Não havia perspectivas além da certeza inevitável do sacrifício. Por isso o caminhar era arrastado. Ninguém tinha pressa de morrer.

Quando o número de escravos tornou-se maior que o espaço disponível para abrigá-los, a decisão óbvia foi tomada: algumas centenas teriam que ser sacrificadas. Os maus tratos, a má alimentação e o cansaço trariam a morte a eles cedo ou tarde – era sempre assim. Mas se haveriam tantas mortes, então que elas tivessem alguma utilidade. E assim se decidiu.

Sangue humano era preciosa matéria-prima para a execução de magias negras. Complexos rituais de feitiçaria exigiam corações de seres de falecimento recente. Os cadáveres poderiam, quem sabe, serem animados para se tornarem escravos-zumbis. O gado era dispensável, mas o método do abate faria toda a diferença. As vidas não tinham valor; as mortes eram preciosas.

Deviam ser quase quinhentos e seguiam. Lutavam contra o chão em uma caminhada lenta e mórbida. Não havia chicotes para apressá-los – a única coisa que os açoitava era o vento colérico que antecipava a tempestade. Mas nem isso sentiam. Olhares vazios, passos robóticos. Cabeças sem nome conformadas com a viagem sem volta ao abatedouro. 

Gado. Gado servil. 

A poucas centenas de metros dali. Outro rebanho, outro destino. Sob o incentivo sangrento dos chicotes, trabalhos braçais. Tarefas diversas, pouco ou nada úteis, que pareciam ter sido criadas por alguma imaginação doentia apenas para maltratar os escravos – e nisto eram bem-sucedidas.

Tudo que devia ser grito dava lugar a um doloroso lacrimejar. O sofrimento era silencioso. A violência há muito deixara de ser contra os corpos – era contra as almas. A única reação aos açoites era o sangramento. Não existia outra forma de protesto. Os escravos não tinham mais forças nem para gritar. 

Mas os gritos vieram, embora fossem outros. 

Os feitores iam sendo esquartejados e perdendo a vida velozmente. A grande maioria morreu sem sequer saber quem ou o que os atingiu. Depois foi a vez de os senhores serem decapitados ou estocados em diversas partes do corpo. Foram dez minutos de assassinatos incessantes. As mulheres das casas foram poupadas e orientadas a fugirem, pois ninguém poderia garantir a segurança delas quando os escravos fossem libertados.

E então as espadas desceram sobre as correntes, as algemas e os grilhões. Água fresca e comida decente foram servidas àqueles que não eram mais gado e que não sabiam como agradecer. Só após uma refeição devorada às pressas é que os libertadores foram vistos com calma por parte dos ex-cativos.

Eram dez indivíduos robustos que trajavam imponentes trajes de couro curtido. Os elmos eram simples, revelando os rostos em sua maioria preenchidos por barba espessa e bigode discreto. Todos usavam botas de cano longo e tinham às ancas bainhas abrigando espadas igualmente sujas de sangue. Ao lado dos cavalos, cuidadosamente amarrados em árvores a dezenas de metros dali, flâmulas indicando pertencerem a alguma ordem de cavalaria ou família influente. O brasão não podia ser visto à distância, e mesmo que pudesse, o símbolo era desconhecido para o ex-gado.

Não se podia dizer que eram escravos desde que se conheciam por gente, porque jamais se conheceram como tal. Eram escravos desde o nascimento, e não tardou para que seus libertadores percebessem após minutos de conversa que aquelas pessoas não saberiam o que fazer com a recém-adquirida liberdade. Provavelmente morreriam de fome, já que não demonstravam que fariam qualquer coisa por iniciativa própria. Só tomariam água, por exemplo, se alguém lhes ordenasse.

Na propriedade que abrigava os senhores, só suas esposas e filhas, assustadas demais para fugir. Os ex-escravos contaram que ouviram seus feitores comentarem que eles seriam sacrificados em ritual de magia negra, mas não disseram quem o executaria. Seria o feiticeiro um dos homens que os dez libertadores mataram? Ou seria uma das mulheres poupadas. 

- Vamos até o casarão. Elas vão ter que explicar tudo. 

Os dez cavaleiros deixaram os indivíduos agora livres se fartando com o que ainda restava da comida e caminharam lentamente em direção ao casarão. Era uma construção imponente e de arquitetura externa luxuosa, com suas paredes de mármore e uma sacada no andar de cima que lembrava as do antigo palácio real.

Vendo que seriam “visitadas”, as mulheres não se intimidaram. Duas delas tomaram a frente das demais e foram saindo para um salão ao ar livre na área externa. Os dez cavaleiros tinham as espadas empunhadas e expressões nada combativas. Eles realmente pareciam só querer fazer perguntas.

- Por que mantinham aquelas pessoas como escravas? Por que queriam sacrificá-las? O que ganhariam com isto?

A resposta foi uma troca de olhares entre as interrogadas e um sorriso escarninho de quase todas elas. Os dez guerreiros não perderam a calma e apenas aguardaram. Não tinham pressa em obter as respostas.

- A escravidão é permitida por lei nestas terras – uma respondeu – Achei que soubessem disto.

- Era necessário serem tão cruéis com os escravos?

- Eram nossas propriedades – quem respondeu foi outra – Podíamos fazer o que quiséssemos com eles.

Os dez desembainharam as espadas.

- E ainda podemos, pois vamos recapturá-los daqui a pouco.

- Quem são vocês? Algum tipo de feiticeiras?

- Somos suas futuras senhoras.

Um estalo de dedos e todos os músculos se enrijeceram. As lâminas se soltaram das mãos, as forças de vontade sucumbiram ante aquele poder. Os dez não tinham mais controle sobre seus corpos. Quando se deram por si, estavam ajoelhados, os braços submissamente estendidos à espera das algemas que selariam o fim de suas liberdades.

Um dos braços se libertou do controle arcano e puxou velozmente a espada do chão. Em um movimento rápido talhou parte do abdômen da uma das senhoras, que cuspiu sangue e caiu para trás. O domínio mental se desfez e todas as outras recuaram um passo. Todas as armas foram novamente pegas.

- Vejo que temos muitas feiticeiras por aqui. Qual de vocês vai responder nossas perguntas?

A resposta foram mais gestos arcanos. Aquela batalha não terminaria tão cedo.

Então um som de galope chegou trazendo a notícia de que mais libertadores vieram para o combate. Os que já estavam ali cobriram os rostos para lidarem com os miasmas encantados que viravam fumaça nociva. Dois desmaiaram, cuspindo sangue e ferindo o crânio em violentas convulsões. Um terceiro ceifou a própria vida, a consciência já o tendo abandonado totalmente.

O som dos galopes se mantinha, mas ganhava a companhia do zunido do ar sendo perfurado por flechas de fogo. Duas delas cravaram-se no peito das bruxas, que praguejaram e cuspiram algo verde no chão. As demais criaram paredes de brilho negro, fazendo os projéteis se voltar contra quem os havia disparado.

- Seus ataques não nos afetam. Aconselho que se rendam – a voz era um zumbido estridente.

As flechas começaram a vir em tempestade, como se trazidas por uma nuvem ininterrupta que cuspia sem controle. Umas vinham com fogo, outras com a ponta embebida em ácido, e uma última poderosa o bastante para romper a barreira defensiva de seu alvo.

A bruxa se contorceu, o corpo horrendo ganhando formas bestiais até ir murchando e virando uma casca fétida. As demais gritaram e rosnaram como feras acuadas. Chegara um inimigo capaz de vencê-las.

- Um mago. Eles têm um mago.

As flechas continuaram vindo, mas não havia mais quem fosse atingido por elas. As bruxas fugiram, seus encantamentos mais potentes usados como forma de teleportação.

Não houve júbilo. Três vidas humanas se perderam, e parecia que outras tantas também não resistiriam aos maus-tratos das últimas semanas.

Ao menos, o gado voltava a ser gente.

Aos libertadores, apenas a certeza de que as batalhas contra as forças do mal não terminavam ali.

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⏰ Última atualização: Nov 16, 2014 ⏰

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