06

10 0 0
                                    

Sentiu algo leve e macio tocar sua face. Um cheiro doce tomava todo o quarto, lembrando-o de rosas quando estavam prestes a serem colhidas. Seus olhos abriram com sutileza, diante de si encontrava-se July, vestida em um poderoso e suave vestido branco. Seus lábios esticaram formando um sorriso, a serena luz que vinha de fora realçava a pele morena de sua amada. 

– Levante-se pequeno garanhão, caso contrário o xerife ficará bravo com você. – Disse ela acariciando sua face. 

– Que se dane o xerife. Eu poderia ficar te olhando assim por décadas.

July sorriu com aquela peculiar observação. Seu rosto começou a ganhar tons rosas, fazendo-a parecer um camarão.

– Olhe essas suas bochechas vermelhas. São tão doces quanto uma maça do amor?

– Quer prova-las? – Em seguida July desceu sua face para mais perto da dele, e com um suave beijo o guardou sobre si. Poderia ter durado apenas segundos, mas para Doc, aquele beijo parecia ter durado anos. E não ficaria triste se assim fosse. 

Após afastar seus doces lábios cobertos pelo licor da juventude, ele questionou-se de o quão atraso estava para seu trabalho. O beijo o atordoou de tal forma que o fez perder noção do tempo.

– Você está um punhado atrasado. – Respondeu July para a expressão de seu amado. – Diria que em torno de um quarto das oito.

Doc saltou da cama, pegou sua jaqueta e deu um último beijo em sua amada. Tão rápido que não pode apreciar como o anterior. Chegou até a porta quando um grito o fez voltar-se para ela. Ela estava sobre sua cama coberta de sangue, seus olhos fúnebres o encaravam. Sem vida, sem expressão e sem brilho.

Ele saltou de sua cadeira, quando percebeu algo em sua face que fazia cócegas. Uma maldita barata, protestou para aquele ser grotesco que andava sobre seu rosto. Deu um rápido tapa para expulsa-la, finalizou esmagando ela no chão. Ainda estava atônito com o que acabara de presenciar em seu sonho. Tudo foi tão real, nem mesmo lembrava de quanto tivera seu último sonho com ela. O álcool parece que excomungava todos eles. Sempre que adormecia na bebedeira, não lembrava de sonhar com nada. 

Levantou para esticar-se, abriu um pouco de sua cortina e na fresta da janela conseguiu enxergar que o sol estava prestes a nascer. Tentou supor a hora pelo contraste que fazia com as nuvens, analisou que seria em torno das seis horas. Voltou-se para sua mesa e guardou sua carabina na parte inferior. Mas faria questão de manter sua pistola consigo, caso fosse necessário usa-la. Sentiu uma grande vontade de matar sua sede com alguma bebida maldita, mas decidiu que iria controlar essa vontade. Sabia que era algo passageiro, tentaria então suprimi-la com outras bebidas. 

Saiu para tomar algum ar, e quem sabe, achar algum café. Já nem lembrava mais o seu gosto. Quando saiu de seu escritório, sentiu o ar gélido da manhã cobrir toda sua pele exposta. Esse era um dos momentos mais frescos naquela cidade que, segundo ele, carregava um pedaço do inferno. Após trancar seu escritório, caminhou com cautela em direção a floresta. Parece que algo ali o atraía para dentro daquelas matas, um chamado mudo. Colocou sua mão sobre seu coldre, não pensou o porquê fez aquilo, mas se tivesse que explicar, diria que foi seu extinto. 

Sentiu-se observado. Uma sensação ruim, um calafrio que percorreu todo seu corpo. Olhou ao redor para ver se encontrava o motivo de sua suposição, mas seus olhos não encontraram nada. Tinha certeza de que o desaparecimento do velho Freddy tem algo a ver com aquele local. A passos mansos saiu da cidade, que naquele momento parecia deserta, a cada passo aproximava-se mais das verdes matas. De onde estava já conseguia sentir o cheiro da natureza, ouvia também o chacoalhar das folhas nas colossais árvores. Não se deu conta do tempo que levara para chegar até lá, mas estava mais perto de Minerva do que pensou. Nem mesmo precisou de cavalo para estar lá. Já tivera contato com outros locais parecidos, mas nunca sentiu um peso como sentia naquela. 

Chegou próximo a uma gigantesca árvore que se destacava entre as demais. Passou seus dedos sobre o velho tronco para sentir que estava ainda ligado ao mundo físico. Quando um som de galho quebrando o distraiu. Imediatamente sacou sua Colt do coldre. De relance observou alguém com uma vestimenta estranhamente bege cruzar mata a dentro. Suas pernas travaram sobre o solo. Trêmulas, sentia-se impotente para perseguir aquele ser. A misteriosa criatura percorreu tão agilmente sobre aquele lugar que lembrava um veado correndo de seus caçadores. 

Mas o pouco que viu, sabia que sua estrutura era semelhante à de um humano. Guardou sua arma e correu para a cidade o mais rápido que pode. Suas pernas reclamavam pela dor, a volta fora mais longa que a ida. Sabia que ali tinha dedo de alguns dos índios. Eles descumpriram com a promessa, Doc sabia que precisava tomar alguma atitude sobre isso. 

Quando chegou em Minerva observou que uma roda estava formada próximo a igreja. O pequeno, mas barulhento sino da cidade tocava, aquilo não era e nunca foi um bom sinal. Aquele peculiar barulho sempre era ouvido quando alguém da cidade se encontrava com a dona morte. Foi empurrando as pessoas que ali estavam avacalhando seu trajeto, até que se deparou com um corpo caído ao chão.

– Não! Você não, Henry. – Exclamou o xerife em lamentos. Olhou ao redor e encontrou olhares amedrontados. Engoliu em seco, seus olhos permaneceram arregalados. Não queria acreditar nisso. A pele do seu velho amigo estava roxa como uma berinjela. Logo pensou nos malditos irmãos Balton, descartando completamente os índios nos quais acabara de pensar. Onde aqueles malditos estão? Buscava-os ferozmente sobre a multidão. 

Seus lábios então contraíram, sua feição mudou tão rápido como a luz do sol iluminara pela manhã. Ficara atento a noite toda, foi o primeiro da cidade a acordar, e mesmo assim não conseguira salvar seu amigo. De que adiantava permanecer sóbrio se as consequências eram menores sobre o álcool? Seus olhos subiram quando encontrou Dulliver o observando. Até que esse, virou e desapareceu no meio de toda multidão. 

– Se todos já mataram vossas curiosidades, voltem agora para o maldito trabalho de vocês. – Esbravejou suas fatais palavras, como lâminas afiadas que cortam as peles ásperas, o corte foi tão profundo, que todos ali seguiram seus rumos sem protestar.


Doc olhou novamente para o seu amigo, pegou seu chapéu e cobriu seu rosto. Iria aguardar ali a chegada do coveiro. Era o máximo que poderia fazer por seu amigo. O arrependimento massacrava seu coração, de tal forma que o fazia perder o ar. Era manhã, mas seu dia parecia ter sido longo o suficiente para que fosse noite novamente. Não era possível que John não tivesse percebido. Como ninguém ouviu o clamor do velho homem por sua vida? Ou então Doc tenha ouvido. Aqueles gritos que o acordaram era dele? 

– Meu Deus. Eu sou tão inútil assim? Por que ainda vivo Deus?

– Calme Doc. – Disse John aproximando-se e abaixando ao seu lado.

– Me acalmar? Porra Jhon, vá a merda. 

John sobressaltou com as palavras de Doc. Por mais que ele resmungasse, nunca ouviu seu amigo pronunciar palavrões. Contudo por um lado, entendia o sofrimento dele. Já passara por isso diversas vezes.

– Como alguém como você não percebeu isso? – Continuava Doc em suas palavras violentas, mas sofridas.

– Falhei meu amigo. Sinto muito.

O xerife suspirou completo por descontentamento. Mas agora não adiantava mais discutir sobre isso, o fato era que o pior já ocorreu, teria que prosseguir e terminar e lidar com isso. Observou o coveiro chegando e carregando um grande caixão por uma corda que o fazia arrastar sobre a areia. Enquanto ele se aproximava, pensou se aquele velho homem aguentaria arrastar mais pessoas, pois ainda hoje, daria mais dois corpos para ele enterrar.

Coração de Prata - As crônicas de um velho oesteWhere stories live. Discover now