Ao relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual criará dúvidas naturais acerca da autenticidade de minha narrativa. É grande infortúnio o fato de que o grosso da humanidade seja limitado demais, em sua visão mental, para pesar com paciência e inteligência esses fenômenos isolados, vistos e sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e mentais de cada indivíduo, por meio dos quais nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.
Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado desde sempre em reinos que não pertencem ao mundo visível, passando minha juventude e minha adolescência debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os campos e bosques das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros rapazes leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer mais detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca de meu intelecto que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam. Basta-me relatar os eventos, sem analisar as causas.
Disse que vivi afastado do mundo visível, mas não disse que vivi sozinho. Isso nenhuma criatura humana poderia fazer, desde que, à falta da camaradagem dos vivos, inevitavelmente se entra na companhia de coisas que não são – ou não mais estão – vivas. Próximo à minha casa existe um vale arborizado bastante singular, em cujas profundezas crepusculares eu passava grande parte de meu tempo a ler, a pensar e a sonhar. Pelas suas encostas cobertas de musgo ensaiei meus primeiros passos de infância, e em volta de seus carvalhos grotescamente retorcidos se teceram minhas primeiras fantasias de juventude. Conheci as dríades dessas árvores e não raro assisti às suas danças selvagens sob os raios vacilantes de uma lua pálida, mas acerca dessas coisas não devo falar agora. Falarei apenas da tumba solitária em meio ao matagal mais escuro do declive – a tumba abandonada dos Hydes, uma velha e nobre família cujo último descendente direto fora depositado em seus negros recessos muitas décadas antes de eu nascer.
O pórtico a que me refiro é feito de granito ancestral, lavado e descolorido pelas névoas e pela umidade de muitas gerações. Escavada na encosta, apenas a entrada da construção é visível. A porta – uma pesada e proibitiva laje de pedra – pende de dobradiças de metal enferrujado e, ligeiramente aberta, jaz lacrada por pesadas correntes de ferro e cadeados, de acordo com um repulsivo costume de meio século atrás. A residência do clã cujos descendentes estão enterrados aqui coroou certa vez o declive no qual está a tumba, mas há muito tombou vitimada pelas chamas que desceram do céu na forma de um relâmpago. Daquela tempestade que à meia-noite destruiu essa lúgubre mansão os habitantes mais velhos da região às vezes falam entre sussurros e inquietações, aludindo ao que chamam de “ira divina” de um modo que nos últimos anos fez crescer vagamente o fascínio que eu sentia pelo sepulcro encravado na mata. Um homem apenas pereceu no fogo. Quando o último dos Hydes foi enterrado neste local de sombra e quietude, a triste urna de cinzas veio de uma terra distante, para a qual a família se mudou quando a mansão pegou fogo. Não resta ninguém para colocar flores diante do portal de granito, e muito poucos se dão ao trabalho de enfrentar as sombras depressivas que parecem guardar estranhamente as pedras lavadas pelas chuvas.
Jamais esquecerei aquele entardecer em que, pela primeira vez, me deparei com a semi oculta casa da morte. Foi em pleno verão, quando a alquimia da natureza transmuda a paisagem silvestre numa única e quase homogênea massa de verde, quando os sentidos estão quase intoxicados com os mares afluentes de verdura úmida e os odores sutilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Numa tal ambientação a mente perde suas perspectivas, o tempo e o espaço tornam-se triviais e irreais, e ecos de um esquecido passado pré-histórico batem insistentemente contra a consciência enlevada.
Durante o dia todo eu tinha estado a perambular através dos bosques místicos do vale, a conceber pensamentos que não há que discutir e a conversar com coisas que não há que nomear. Com apenas dez anos, eu tinha visto e ouvido muitas maravilhas que a turba desconhecia e já era espantosamente maduro em certos aspectos. Quando, depois de abrir caminho entre duas touceiras de arbustos, subitamente deparei com a entrada da cripta, não tinha o menor conhecimento acerca do que encontrara. Os blocos negros de granito, a porta curiosamente semi cerrada e os entalhes funerais sobre o arco não despertaram em mim quaisquer associações de caráter fúnebre ou terrível. Sobre sepulturas e tumbas eu sabia e devaneara bastante, mas fora poupado, devido ao meu temperamento peculiar, de todo contato com adros e cemitérios. A estranha casa de pedra escondida entre o mato na encosta constituía para mim apenas uma fonte de interesse e especulação, e seu interior frio e úmido, para dentro do qual eu espiava através da excruciante abertura, não me sugeria nada de morte ou decadência. Mas naquele instante de curiosidade nasceu o desejo loucamente irracional que me trouxe até este inferno de confinamento. Espicaçado por uma voz que deve ter vindo da alma medonha da floresta, tomei a decisão de penetrar na escuridão que me convocava, a despeito das pesadas correntes que impediam minha passagem. Na luz evanescente do dia chacoalhei insistentemente os obstáculos enferrujados, na esperança de abrir a porta de pedra, e até mesmo experimentei espremer meu corpo magro através do pouco espaço disponível, mas essas tentativas não surtiram efeito. Curioso no início, tornei-me frenético e, quando ao anoitecer retornei a casa, jurara aos cem deuses da mata que a qualquer custo um dia haveria de forçar minha entrada nas profundezas escuras e gélidas que pareciam me chamar. O médico de barba grisalha que todos os dias vem até meus aposentos certa vez disse a um visitante que essa decisão marcou o começo de uma lamentável monomania; mas deixarei o julgamento final a cargo de meus leitores, depois que souberem de tudo.
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Os Melhores Contos de H.P Lovecraft
FantasyH.P. Lovecraft é um dos grandes mestres do horror e da ficção cósmica. Com enredos marcados pelo simbolismo e muitas vezes inspirado por seus constantes pesadelos, Lovecraft envolve o leitor em uma atmosfera tenebrosa, cujo desfecho é sempre surpree...