ENCONTRO

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Enchi as mãos com mais um pouco de água e joguei no rosto. Com os pingos escorrendo por minha face, me encarei no espelho. Poucas vezes na vida me senti tão certo do que estava fazendo. Meu rosto molhado, refletido no espelho denunciava cansaço. Na verdade, era apatia, eu ainda era jovem, mas parecia velho com rugas de preocupação no rosto, olheiras enormes, linhas de expressão que, supostamente apareceriam apenas vinte anos depois. E eu estava cansado, estava exausto. Exaurida, por todo o esforço que minha mente fazia, em tentar se manter normal, ou sã. Eu poderia sentir ela craquelada dentro de minha caixa craniana, podia sentir os pedaços soltos, se balançando enquanto eu movia minha cabeça para lá e para cá. E, depois de tentar remendar os pedaços durante anos, através de remédios, terapia, distrações, eu já havia desistido.

Naquela manhã de fevereiro, no pico do verão de São Paulo, eu havia decidido acabar com todo sofrimento.

Decisões assim não são fáceis de tomar, se toma por desespero, se toma por cansaço. Nunca por coragem, mas também não é covardia. Eu via o fim da minha vida não como um final glorioso, onde eu forte, escolhi o melhor caminho, mas também não algo fácil, covarde. É algo como tomar autonomia de meu corpo e opções que me são oferecidas, algo como encerrar para sempre uma história. Uma força tão grande quanto uma fragilidade. E eu sentia apenas dor.

Naquela manhã, fazia sol. Era verão afinal de contas, e os raios entravam em minha janela, sem pedir licença, iluminavam a casa, me chamando pro dia lá fora, me convidando de forma muito convincente que o céu azul lá fora, os sorrisos dos estranhos, e o calor contra minha pele fariam eu me sentir mais viva. Embora eu soubesse apreciar a beleza no mundo, eu não conseguia lhe tocar, me sensibilizar com ela, eu não conseguia me sentir parte dela. Eu me sentia um estranho, como se todos os sentidos tivessem vazado de meu corpo. Eu olhei o dia lindo lá fora e decidi fechar as cortinas.

Encarando-me no espelho, eu conseguia notar os sinais físicos: olheiras profundas, os braços e pernas cobertos de cicatrizes, meu cabelo sujo por simplesmente não fazer questão de me banhar e ralo, por tantas vezes que arranquei tufos com as próprias mãos; minhas unhas quebradiças. Não era bonito, talvez um dia fosse poético, mas naquele momento, eu me sentia uma história de horror ambulante.

A campainha tocou, justamente no horário esperado e eu fui desperto dos meus devaneios. Coloquei uma camiseta que estava jogada no chão, azul praiana que minha ex, Michele me deu, e abri a porta. Assim como eu, meu gato foi ver quem era.

-Oi bom dia! Tudo bem, Lu? - ela parecia muito feliz e animada, quase como uma criança esperando um presente de Natal. - Ele já está pronto?

Um nó se atou da boca do meu estômago, até a minha garganta. Minhas lágrimas ameaçaram pular para fora, mas fiz uma força quase que descomunal para me manter inteira, pelo menos ali.

-Eu ainda não o coloquei dentro da caixa de transporte.

Ele me olhou de forma estranha. Sebastian era um gato carinhoso, que estava comigo há 8 anos. Sua pelagem acinzentada e seu jeito tímido de ser, me fizeram companhia por todo esse tempo. Minha avó o batizou como Sebastian Dior em homenagem a um perfume se eu não me engano. De forma engraçada, quem batiza um gato com nome de perfume.

Eu decidi doá-lo, pois não queria que ele estivesse no apartamento na hora do ato, além do mais, alguém precisaria cuidar dele, depois que eu me fosse. Sinceramente, era a única coisa nesta terra que dependia de fato de mim. E eu não podia prendê-lo desta forma. Assim, doar foi a única e dolorosa opção possível. Pensei em deixar com algum parente ou amigo, mas todos estranhariam eu me desfazer de algo que eu tanto me afeiçoava. Assim, quando Sebastian se aproximou, para se esfregar entre minhas pernas em um sinal de carinho, eu o agarrei e o aninhei contra meu peito. Duas ou três lágrimas escaparam, mentalmente eu me despedia, e me desculpava. Eu sei, ele sofreria também, mas eu não estaria aqui por muito mais tempo. Ele me olhou nos olhos, acinzentados e intensos, quase como se adivinhasse o que eu planejava. Por um momento, eu me envergonhei de minha covardia, e, não aguentando a intensidade de meus sentimentos, o coloquei dentro da casinha e travei a porta.

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