-Esses devem ser seus últimos momentos de vida.- a médica me diz com todo o seu profissionalismo.
Suspiro.
No fundo eu já sabia que não viveria por muito mais tempo.
Aos meus 76 anos diria que já vivi o bastante, uma pena que eu não tenha sabido aproveitar do jeito certo a vida, como agora gostaria de ter aproveitado.
Vivi muito e, ao mesmo tempo, não soube viver nada.É nesses momentos que surge a vontade de voltar no tempo, mas infelizmente esse super poder eu não tenho.
Assim que a médica se retirou, fechei meus olhos sentindo lágrimas descerem pelo meu rosto.
Fui tão egoísta a minha vida toda, só pensava em mim e na minha fortuna, queria ter dinheiro e mais dinheiro pra me sentir superior aos outros. Maltratava os empregados, judiava dos animais, me sentia o centro do universo, rico e solitário, afinal não precisava de ninguém, era o que eu dizia a mim mesmo. Tinha carros na garagem, várias mulheres na minha cama toda noite, me sentia um rei por isso.
Fui um completo tolo, isso sim.
Hoje aos meus últimos momentos de vida não tenho ninguém além de mim mesmo. Morrerei sozinho assim como vivi toda minha vida.
Serei apenas eu no meu próprio velório.
Se arrependimento matasse estaria morto aos meus 49 anos quando percebi que tudo que tinha eram apenas bens materiais.
Abri meus olhos vendo Dona Ester na minha frente, era tão idosa quanto eu, mas essa era a única coisa que tínhamos em comum.
Ela, rodeada pela sua família e amigos, sorria como eu nunca havia sorrido na vida. Ela parecia tão feliz e tão amada que, por um momento, confesso ter sentido inveja.
Eu almejava aquilo, mas infelizmente minhas atitudes me fizeram parar neste estado, sozinho, sem ninguém.Suas roupas já gastas me fazia pensar que ela não tinha muito dinheiro. Suas coisas eram tão simples.
Imagino que sua vida tenha sido boa apesar da situação financeira.-O horário de visita acabou.- anunciam da porta.
Eles começam a se despedir e logo o quarto se tornou vazio novamente, era apenas eu e Dona Ester.
Fiquei a encarando enquanto ela olhava pela janela e sorria.
Ela transmite uma paz que eu não saberia explicar, uma paz da qual eu nunca havia sentido.
Então ela me olhou e eu rapidamente desviei o olhar torcendo para que ela não tivesse notado.
-Pode perguntar.- ela diz, de repente, me fazendo voltar a atenção para ela.
-O quê?- faço-me de desentendido.
-Sei que quer me perguntar algo, estava me olhando por muito tempo. Vamos lá, pergunte.
Como ela sabe que eu estava olhando pra ela?
-Teve uma vida feliz?- finalmente ouso perguntar.
Ela sorri como se naquele momento estivesse lembrando toda sua vida em um flashback.
-Muito feliz! Outros no meu lugar colocariam impedimentos, como minha casa pequena, meu trabalho que pagava tão pouco, meu marido que já faleceu, minha falta de estudos, no entanto, eu decidi que a vida era muito curta para que eu ficasse dando tanta importância para o pior dela. Resolvi que não importava roupa de marca, o que importava era estar vestida, não importava uma casa gigantesca, o importante era ter uma casa aconchegante, não importava comer a melhor carne, o que importava era que todos os dias eu tinha um alimento na mesa.
E não, eu não me contentei com pouco, eu só decidi que não valia tanto a pena gastar minha saúde mental com isso, eu cansei de chorar todos os dias por não conseguir melhorar de vida não importasse o que fizesse, então comecei a pensar mais nas coisas que eu já tinha alcançado. Assim consegui ser mais feliz, apreciando as pequenas coisas que a vida me deu. Não preciso de muito, só preciso do suficiente, isso não quer dizer que eu não quero uma vida melhor para os meus filhos e netos, só que eu espero que, assim como eu, eles não fiquem chorando pelo que não conseguiram alcançar mas dêem valor ao que já tem e eu sei que ter dinheiro não é o problema, o problema é querer sempre mais e mais e mais e não aproveitar o que já se tem, aliás dinheiro não é tudo.Me emocionei tanto com suas palavras.
-Queria ter sabido dar valor!- foi a última coisa que consegui dizer antes dos meus olhos pesarem e eu perder a consciência.
Já não estava mais no quarto de hospital e sim em um lugar escuro e vazio.
-Olá?- grito, mas não obtenho resposta alguma.
Acho que finalmente morri e olhar ao redor e só ver escuridão me arrepiou a espinha, será que chegou a hora de pagar por todo mal que fiz?
De repente, começo a ouvir passos, cada vez mais perto de mim. O medo me invadiu, eu gelei por completo.
-Que.. quem está aí?- gaguejo
Então algo se aproxima de mim, com seus mais de três metros, era algo sem forma, com uma cor que eu antes não havia visto, era tão sombrio.
-O que vai fazer comigo?- pergunto quase sem voz.
-Você verdadeiramente se arrependeu, por isso fui mandado aqui.
-O que isso quer dizer?- pergunto confuso
-A vida é uma só, e a sua chegou ao fim, então não poderás vivê-la de novo, no entanto terás outra chance então poderás fazer algo pelo seu eu. Te darei a chance de dizer algumas coisas para o seu eu do passado, para tentar mudar as coisas para ele e talvez assim mudar o seu fim, mas aproveite bem essa chance, porque será a única.- ele disse e antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa eu acordei na minha mansão.
Olhei ao redor e estava tudo em seu devido lugar, eu realmente estava em casa, mas esse nunca foi meu lar.
Subi as escadas e entrei no meu quarto, tinha outro de mim, deitado na cama, adormecido. Uma versão mais jovem e inexperiente.
Me aproximei não acreditando que aquilo realmente estivesse acontecendo. Assim que o toquei senti um choque percorrer todo o meu corpo.-O seu tempo está acabando, diga de uma vez por todas.- ouço a voz da criatura apesar de não vê-la no quarto.
Não sabia muito bem o que dizer, então fechei meus olhos e falei aquilo que se passava em meu coração.
-Querido ou não tão Querido Eu, pare de ser tão raso com as pessoas, deixe elas entrarem e tomarem uma parte do seu coração, aliás é pra isso que ele serve não é mesmo? Para amar. Deixe de ser tão mesquinha, de se preocupar tanto com dinheiro porque daqui um tempo, quando estiver na beira da morte, nada disso vai importar mais, a única coisa que fica são as memórias que as pessoas guardam de você, os bons momentos, os frutos que deixou na terra, e se continuares deste jeito a única marca que deixarás no mundo é uma marca de ódio.
Morrerás amargurado e sozinho. Podes até achar que você só precisa de si mesmo e de mais ninguém, e talvez isso realmente seja verdade, mas nos seus últimos momentos irá precisar de alguém, alguém que sinta tua falta, alguém que diga o quão bom você foi, alguém que continue o teu legado. Não dá pra viver sozinho a vida toda, você até sobrevive, mas terá para sempre um buraco vazio dentro do seu coração. Então, guarde isso contigo a vida inteira, porque hoje a vida pode parecer longa, mas na real ela é muito curta, passa num piscar de olhos e se você não começar a mudar, vai se arrepender amargamente quando souber que no seu funeral será apenas você mesmo.Assim que terminei de dizer o meu outro eu acordou num susto e vi quando ele começou a chorar descontroladamente, acho que, assim como eu, ele finalmente tinha se arrependido do jeito que levava a vida.
-Chega de viver assim!- ele disse e eu voltei para o vazio em que antes me encontrava, a criatura novamente estava a minha frente.
- Muito bem, agora sinta o que ele irá sentir.- disse e tocou em mim me fazendo sentir uma enorme alegria, eu sentia que eu tinha vivido bem, que eu não tinha morrido sozinho, mas sim cerca de amigos e familiares. Parecia que tudo o que vivi não passou de uma lembrança ruim, que na verdade a minha vida tinha sido completame o oposto.
Eu tinha tido filhos, uma esposa que me amava tanto quanto eu a amava, eu fazia doações para os necessitados e me sentia tão maravilhosamente bem por isso, eu tinha carinho pelos meus empregados, os tratava como se fossem da família. Estava tudo tão diferente, e tudo que eu tinha que fazer é saber dar um sentido a vida.
Queria ter feito diferente, mas o que me resta agora é torcer para que outros não cometam o mesmo erro que eu cometi.
Segundas chances não são dadas a todos, mas, quando dadas, não devem ser desperdiçadas.
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Querido Eu
Short StoryAo final de sua vida, um homem de 76 anos percebe que não soube aproveitar a vida como deveria. Morrendo, completamente só, se arrepende de tudo que já fez, porém a vida é uma só, não há como voltar no tempo. Ou será que dá? E se pudesse dizer algo...