Parte III

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Era nosso terceiro Natal juntas.

Durante os sete meses até lá, eu aprendi mais sobre Marisol. Ela prendia o cabelo quando o trabalho ficava puxado, quando tinha pesadelos e lembrava de seu mês na Faixa de Gaza, ela se espremia contra o azulejo de nosso banheiro, como quando tinha cirurgias difíceis, mas agora não chorava e debaixo dos nossos lençóis escuros, ela dizia sobre um dos seus colegas no acampamento: "chorar não vai adiantar de nada", eles gritavam pra ela, "chore trabalhando!", eles diziam. Mar disse que atendeu crianças com rostos em chamas, com as lágrimas embaçando sua visão, atendeu adolescentes depois de serem mutilados, atirados e as lágrimas se misturavam ao seu sangue. Ela disse que não conseguia falar sobre isso desde que voltara, que sua nova terapeuta disse que seria interessante dividir essas memórias e que eu tinha sido a primeira a quem ela confidenciou.

Nessas noites, nós dormíamos agarrando uma a outra, como se o mundo pudesse acabar, caso nos distanciássemos.

Mar me fazia surpresas desde seu aniversário, como se quisesse me agradecer pela bagunça em nossa casa. Outro dia, ela tinha deixado várias flores em cima da mesa com "comprei café colombiano. prove!!!". Eu tinha rido e teimado no outro dia que não precisava gastar dinheiro com isso.

- Anja, eu só tenho você pra gastar dinheiro. Com quem eu mais gastaria?

Ela já gastava dinheiro com seus projetos voluntários e boa parte de nossas despesas eram divididas, ainda sim, ela gostava de me mimar com seus presentes caros que nunca parecia ter fim.

Nesse Natal, decidimos passa-lo com nossa família reunida no Rio de Janeiro. Meus pais estavam ansiosos para uma lua de mel prolongada, então ficaram em um hotel indicado pelo meu cunhado, onde receberam o desconto de blogueiro.

Hoje, ela estava especialmente linda. Mar usava uma de suas calças folgadas que eu tinha dado a ela, de uma marca que Marcelo tinha me indicado, mas o que tinha me levado a receber uma bronca.

- Anja! – ela abriu o pacote com o cenho franzido – Não precisava comprar algo tão caro. Cê sabe que no centro tem a mesma coisa pela metade do preço! Pelo terço!

- Deixe de coisa, Mar. Veja se fica bom em você.

- Eu te odeio, sabe disso?

- Não, você me ama. Agora vai vestir, cê vai ficar linda.

Aquele sorrio pequeno que me matava apareceu e se transformou em seu sorriso grande, em seu sorriso safado e em uma noite muito bem dormida.

Junto com a calça, ela deixou os cabelos presos de uma lado e uma camisa preta folgada demais para definir suas curvas. Em compensação, eu tinha escolhido um de seus vestidos mídis com drapeado no busto, junto com meus tênis confortáveis.

No fim das contas, nós tínhamos vindo tomar café (ou brunch, como Mirella e Marla adoravam chamar) um dia antes da véspera. No outro dia, Mar tinha reservado a véspera para visitar seu primeiro projeto voluntário em uma favela – onde ela queria me levar para construir uma pequena biblioteca ao lado.

Nós estávamos felizes.

Sentei-me no pequeno restaurante, longe da praia, perto do centro. Era uma pequena padaria, com preços caríssimos e muito bem arrumada.

Marcelo se dispersou, assim que entrou – disse que ia ao banheiro. Mirella disse que ia retocar a maquiagem e Marla acabou sentado na mesa de um antigo cliente.

Mar de Anjo.Where stories live. Discover now