Aquarela me ensinou a viver antes mesmo de pintar. No mundo inteiro não há dois quadros iguais em aquarela. Assim como na vida, o extraordinário é a única expectativa permitida por essa arte. Aquele que não conseguir incorporar os erros do caminho ao resultado, cedo ou tarde, há de dissolver-se feito meu amigo.
– Meu amigo morreu por ser canhoto. Era a pessoa mais canhota que conheci na vida. Ninguém morre por ser canhoto. Morre, sim! Respondia a quem me contrariava todas as vezes que contei esta história.
Em aquarela, diminuímos consideravelmente a consequência de fatores externos quando buscamos conhecer o potencial dos materiais à nossa disposição. Por exemplo: tenho AMC. E essas iniciais não dizem respeito nem a tipos de pincéis, à arte marcial, aplicativos ou tampouco a alguma marca de tênis descolado. Essa é a forma mais usual de se referir a um material recebido ainda no útero materno: Artrogripose Múltipla Congênita. Uma síndrome rara, que, congelando as articulações de algumas partes do corpo do bebê, o faz crescer com limitações motoras. Somente os cotovelos e pulsos no meu caso foram afetados. Tenho Artrogripose Múltipla Congênita, não falta de sorte. Ao menos não nessa área.
Minhas mãos ficam num ângulo de quase noventa graus o tempo inteiro. Tipo, Rion Page, a cantora americana; o que me faz odiar maçanetas arredondadas, não poder tocar violão e me despedir das pessoas de uma maneira muito curiosa.
Ilustradores de revista em quadrinhos, pintores de aquarela, portadores de AMC ou pessoas canhotas necessitam adequar-se à imprevisibilidade silenciosa que nos cerca todos os dias. Não se prenda muito a resultados, o importante é descobrir como se dá o processo de cada um. Penso ser esse o único modo de encontrarmos nosso lugar compensador na primavera.
Gosto de pintar a Symplocarpus Foetidus, a flor do repolho, quando não tenho certeza de meu lugar na primavera. O nome pode ser complicado, por isso preste atenção; ela não escolheu feder a podre nem assemelhar-se, tamanha a sua feiura, a
caracóis; ela não escolheu ser polinizada por moscas e talvez por isso nunca ser avistada em jardins, varandas, buquês, cestas de presentes... Tanto que você não a conhece, olha aí! Se pudesse barganhar com a natureza, com fogo e paixão, a flor do repolho seria uma bela rosa. Apesar de tudo, a Symplocarpus Foetidus tem seu lugar na farta flora. Nenhuma outra pode substituí-la. Ela sozinha, por meio do calor emanado do interior de seu caule, é capaz de alterar a temperatura ambiente ao seu redor. E deste modo singular rompe rumos no inverno, permitindo que outras floresçam, cresçam e encontrem seu lugar compensador na primavera.
– Já tem rosa demais no mundo (aplausos). Aprendi essa com meu pai.
Nasci deste modo. Não escolhi nascer assim. Tendo de encontrar o tempo todo um modo singular de fazer tudo quanto fazem os demais. Portadores de síndromes e canhotos, azarados e pobres, altos e baixos, Symplocarpus Foetidus e rosas, todos precisam acreditar em seu lugar compensador na primavera. Deixar de acreditar nisso é deixar de seguir o curso natural da natureza implacável. Meu amigo canhoto jamais entendeu que, embora abra caminhos a outras flores, em certos dias a Symplocarpus Foetidus, com fogo e paixão, continuava desejando ser rosa.
– Nos dias que desejo ser rosa costumo pintar lírios (risos).
Gosto de pensar que esta doença foi generosa comigo de alguma forma; consigo pentear os cabelos. É engraçado, mas consigo. Tudo bem, prendê-los sozinha, entretanto, é diferente, isso não consigo, nem de um jeito engraçado nem de jeito nenhum. Também não posso bater palmas nem cozinhar comidas complicadas; além de me privar de atividades que exijam a manipulação de dois objetos ao mesmo tempo: algo como malabares com facas, por exemplo, está fora de cogitação... Se bem que malabares com facas é complicado para todo mundo.