O GALÃ QUE PODERIA TER SIDO

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Moro no ondulado e quente centro histórico de Vitória. Pode-se chegar a nossa casa por uma escadaria colonial rosa e branca chamada São Diogo, do lado esquerdo da Praça Costa Pereira sem muita dificuldade. Deve-se só estar bem dos joelhos, isso é importante. Moro na chamada cidade alta, meio de esquina, numa rua meio sem saída, embora, na verdade, haja saída. Lá está localizada a casinha azul mais bonita de todas as casinhas azuis do Brasil.

– Você ainda deve estar pensando na rua, tem ou não saída... – risos – Depende de para onde você quer ir.

Para uma rua em pleno populoso centro de nossa capital, ela é até charmosa e calma: rua Erotildes Rosendo; pouquíssimas residências, sem comércios, sem carros, vizinhos pouquíssimos, sem estranhos, por lá quase todos se conhecem, é uma rua de parentes e paralelepípedos. E nessa rua onde quase todos se conhecem, espremida entre dois casarões, distingue-se nossa curiosa e comprida casinha azul. Parece um liquidificador, disse minha amiga na primeira vez em que a viu. Embora tenha três andares, o primeiro não passa de um pequeno rol de entrada; é incrivelmente pequena nossa casinha azul, não é hexagonal, redonda, nem oval, é uma casa comprida e tímida, feito aquelas pessoas magras e altas.

– A casa mais acanhada de toda cidade.

A verdade é que não me imagino morando em outro lugar. O melhor de nossa casinha acanhada, sem dúvida, é a vista para extraordinária Catedral Metropolitana de Vitória. Uma igreja enorme, cheia de incríveis vitrais no estilo gótico europeu, alta, pontiaguda e silenciosa, totalmente silenciosa; e é lá onde costumo ir para ler em plena paz.

– O melhor de nossa casa é ser perto de nossa floricultura.

Nossa floricultura é modesta, cercada por papelarias varejistas, sapatarias, prédios velhos, joalherias, bares e lojas de capinhas de celulares aos pés duma viela estreita. E beirando a murada de pedra depois do almoço, posso ser

encontrada descendo a ladeira Dionísio Rosendo: boa tarde, cumprimento o senhor que passa, dobro o edifício São José, boa tarde, ele me responde; pela sombra das amendoeiras levo meus lírios e meu livro: boa tarde, cumprimento a menina da farmácia, ela não me responde, deve ter brigado com o namorado; ao lado da loja pet ficou de abrir uma ótica, a padaria ficou de vender tapioca também... Há cerca de um ano e meio nos mudamos para esquina da mesma rua. O local, segundo papai, é visivelmente mais estratégico: antes era uma dessas tantas lojinhas especializadas em capinhas de celular. E nos parecia de fora muito maior do que nossa floricultura anterior. Ela estava justamente em frente a Praça Costa Pereira, destacando-se no primeiro andar de um prédio na esquina do trevo.

– Curiosamente azul feito nossa casinha azul.

No centro, essa lojinha sempre foi ponto de referência para qualquer outra por conta de um detalhe simples: ostentava em sua calçada há muitos anos uma escultura de telefone antigo. Diante de sua popularidade, papai entendeu que suas flores teriam muito mais chance se nesse ponto florescerem para toda cidade. De modo que passou a cobiçá-la sem nenhum pudor. Dizia ser seu direito, pois isso serviria de referência para localizarem sua floricultura, já que havia se cansado de divulgá-la por toda cidade.

– As orquídeas são as flores prediletas de meu pai; mesmo que ele diga não ter flores preferidas; assim como os pais, floristas verdadeiros evitam predileção. Mas sei que as orquídeas são suas flores preferidas... Isso é um segredo profissional.

Por fim, almejando melhores lucros com seu próprio espaço no shopping, a nossos cuidados seu proprietário entregou a tão sonhada lojinha de capinhas de celulares; outra vez um longo inverno chuvoso estava perto de acabar, e papai insistia em inaugurá-la antes da primavera, o que nos sobrecarregou com vitrine, balcão novo, prateleiras maiores, freezer para armazenamento das flores, gôndolas de exposição, pintura, porta, pisos, nossa! Era tanto trabalho, chegávamos a jantar no estabelecimento.

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