Ele não sabia quanto tempo fazia e isso o deixava com um desespero preso no fundo da garganta. Muito provavelmente, semanas, mas não dava pra ter certeza. Só havia uma coisa concreta para Coren naquele momento: ele não ia voltar pra casa.
Sentado no chão empoeirado de madeira, encostou na parede e tentou se acalmar (o que não tinha dado certo das últimas vezes, mas não custava tentar). Tentou, pela milésima vez, analisar a situação em que estava, mas não chegou a nenhuma conclusão que já não sabia. A embarcação era grande e, por mais que ele se encontrasse no porão junto com os ratos e alguns outros compatriotas que teriam o mesmo destino que ele, Coren tinha certeza se tratar de um navio mercante da Coroa. Obviamente não a sua.
Ele tinha notado isso no uniforme dos guardas, que passavam vez ou outra para apartar alguma briga. Eram sempre os mesmos e, pelo fato de mandarem guardas reais impedirem escravos de arrancar pedaços um dos outros, era óbvio que não havia ameaça contra a embarcação. Pelo menos não uma que fosse esperada.
Escravos. A palavra doía e fazia seu corpo todo se retrair. Era isso o que eles eram, tinha certeza. Reconhecia alguns rostos familiares do palácio, mas sabia que sua identidade estava longe de ser revelada. Seu alívio vinha de dois fatos muito importantes e surpreendentemente úteis.
O primeiro era que as pessoas ali eram funcionários novos, com menos de 30 anos. Ninguém com status de confiança grande o suficiente para ir até os lados em que ele residia. Na verdade, Coren podia dizer quase com certeza absoluta que ele só se lembrava de seus rostos por vê-los apressados pelo jardim principal nas raras 2 vezes que era convocado a se retirar da Ala Leste.
O segundo era o mais simples, inegavelmente mais simples: ele não saia de seus aposentos para andar pelo palácio desde os 12 anos. Logo, era impossível qualquer um além de sua governanta de 68 anos ou seus tutores igualmente idosos lembrassem de seu rosto, que não era dos mais incomuns.
Coren ouviu as ondas batendo contra o casco do navio. Era um som relaxante que o tornava capaz de deixar tudo e todos à sua volta para trás por um segundo. Ele, pelo menos, não era interrompido. Não falava com ninguém e ninguém falava com ele. Claro que não era o único e agradeceu aos céus por isso.
Sua mão direita começou a latejar e ele se obrigou a fechar o punho para em seguida tornar a abri-lo. Ouviu os estalos que seus movimentos mais mínimos faziam no piso velho e se lembrou do sótão acima da sala do trono. Era um “segredo entre irmãos”, tinha lhe dito Ivar quando o mostrou aquilo. Era mais um cubículo minúsculo e velho, cheio de teias de aranha e onde só cabiam 3 dos 4 irmãos e que era usado para espionar o pai quando este tinha “coisas de adulto” para resolver. Por algum motivo, Ele era o único que nunca era mantido de fora. Desconfiava que a autoridade do irmão mais velho tivesse algo a ver com isso.
Seus olhos começaram a lacrimejar ao se lembrar disso, mas ele as sufocou com todas as forças. Não podia derrubar lágrimas, não ali.
Tentou ao máximo ignorar as imagens daquele dia em sua cabeça. Ele tinha que permanecer firme. Precisava disso, não por si só, mas pelo sangue que corria em suas veias. Devia isso à ele. Desse modo, Coren não se lembrou de quando a cabeça de seus guardas foram cortadas e ele teve que passar por cima de corpos para se salvar. Também não sentiu sua dor de cabeça aumentar ao recordar de Tore, apenas um ano mais velho, o empurrar para a passagem de emergência enquanto a porta de aço se fechava atrás de si. E, por fim, ele não desistiu de pensar e se deitou em um punhado de feno amassado quando sua cabeça se encheu de imagens dele apenas com uma calça e meias, sair correndo pra longe o mais rápido que pode apenas para ser derrubado e drogado por sentinelas. Sentinelas Selenos.
“Esses países não estão do lado de ninguém”, dissera Tore quando era pequenos “Só do deles”. Na época, quando tinha 9 e 10 anos, Coren não pensou que aquilo fosse mais que uma dica para seus jogos de tabuleiro. Mal sabia ele do quanto isso estava errado.Quando acordou, sentiu pela primeira vez em muito tempo, a ausência do balanço constante do mar. Ao invés disso, seu corpo era jogado de um lado pro outro em uma carroça, com outros homens ao seu lado. Achava que não era possível, mas se sentia ainda mais sujo do que quando estava no navio. Seu cabelo ruivo ainda estava tão sujo de terra que parecia mais um ninho marrom e horrível de pássaros. E sua pele, sua pele que naquele momento estava ainda mais escura que o normal por causa do sol tomado em algum momento antes de embarcar no navio, por melhor que fosse em esconder hematomas, mostrava algumas manchas roxas que não pareciam nada bem. Pelo menos não estava mais sangrando e se sentiu aliviado ao perceber, quando lhe passaram um prato fundo com água, que seus olhos continuavam azuis. Pelo que sabia, isso era algo impossível de mudar, mas não tinha tanta certeza depois de dar uma olhada em seu rosto. Sua atenção foi toda dedicada a encarar os detalhes que haviam mudado em tão pouco tempo. Ou muito tempo. Não parecia tanto, mas com certeza não tinha sido pouco. Ou talvez fosse o contrário.
Começaram a apressá-lo, cutucando suas costelas feridas com o cotovelo e ele foi obrigado a passar a água pra frente sem um só gole.
A cortina que tapava a entrada da carroça se afastou quando passaram por um buraco na estrada e um cheiro de jasmim invadiu o lugar. Isso só confirmou o que ele já tinha certeza.
Bom, lá estava ele, no país vizinho de sua terra natal, sentindo como se acordasse para as coisas finalmente naquela hora, com aquele cheiro enjoativo o asfixiando.
Quem diria que o 4º Princípe de Arkos algum dia fosse chegar ao país que o odiava com todas as forças como um escravo?
Ele tentou não pensar em seus irmãos nem onde eles poderiam estar. Se ele estava vivo, ainda havia esperança, não havia?
Coren só podia esperar que sim enquanto ouvia o condutor murmurar alguma coisa em seleno. Era bom saber pelo menos o básico daquela língua enfeitada demais para o seu gosto, mesmo que fosse em uma situação daquelas.
- É um desperdício levar esses garotos para Vossa Majestade - Disse o velho com a voz rouca - Tem uns rostos bons aí.
- É melhor não tocar neles - Disse um outro homem, que devia estar ao lado dele, com a voz fria. - São diretamente do Palácio. Valem mais do que você e eu podemos pagar. Na vida.
Um deles tossiu tão forte que Coren teve certeza que doenças também seriam uma preocupação.
- Porcaria de espólios de guerra.
- É. - Comentou e Coren não conseguiu mais ouvir nada do lado de fora.
Sem conseguir evitar um sorriso pequeno, ele apertou as mãos em um gesto de oração. Não era muito religioso, mas tinha sido ensinado a agradecer quando algo do tipo acontecia.
Como ele podia ser tão azarado, mas ter tanta sorte ao mesmo tempo? Ele ia para o Palácio de Sel, na capital do país. Isso explicava o barco, tinham cortado caminho pelo rio que cruzava a fronteira. De fato, era o caminho mais rápido.
Ele sabia o que aquilo significava. Não seria tocado até chegar ao destino e isso já significava muito. Mas, além dessa "benção", ele também tinha pleno conhecimento de que teria mais conforto como um escravo do palácio. Teria um teto sobre sua cabeça e nunca sofreria uma punição que deixasse marcas visíveis.Pelo menos seu rosto ficaria intacto.
Seu maldito rosto. Tinha sorte de não se parecer com o pai, pelo menos. A certeza de estar a salvo em um reino inimigo não duraria se o reconhecessem.
Cuidadosamente, passou as mãos pelos seus ombros, em uma tentativa de aliviar a tensão, mas parou imediatamente ao sentir algo ali. Uma textura, uma cicatriz que ele não se lembrava de ter. Sua garganta secou e deixou seus dedos sentiram o que já tinha sido uma queimadura. Era pequena, metade do tamanho da seu punho, no formato de… um sol. Aquilo estava longe de o deixar surpreso, mas um sentimento maior que aquele tomou conta de si. Seu corpo tinha sido marcado. Seu ombro direito agora nunca o permitiria escapar daquilo, assim como tinha sido com sua mão.
Tinha medo sequer de pensar com o que mais tinham feito com seu corpo enquanto ele estava inconsciente.
Sua cabeça parecia prestes a explodir.
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Coren
RomanceAcorrentado, marcado e sem nome. Esse se tornou o destino do último príncipe de Arkos, após seu país ser brutalmente atacado por seu suposto aliado. Agora um escravo, Coren agora precisa focar em apenas uma coisa: conseguir sua liberdade. Mas como e...