A Presença

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Vou te contar o que eu sinto.

No início, eu via como pesadelos. Todos têm pesadelos. Todos abrem os olhos no meio da noite e, em meio à penumbra, a mente prega-lhe peças e transforma qualquer silhueta em uma forma humana que o observa enquanto dorme. É a forma mais simples da escuridão tocar o fundo de sua espinha com um dedo gelado.

É terrível como o corpo humano reage ao medo. Você tenta gritar, mas o tremor que cresce pelas costas e arrepia os pelos da nuca esconde sua voz em um saco hermético impossível de abrir e torce sua garganta como as mãos fortes de um psicopata.

Quando eu acordava assustado, transpirando e em espasmos, meus pais consolavam-me e envolviam-me em seus braços fortes e carinhosos. Entre um soluço e outro, lágrimas copiosas inundavam meus olhos que encaravam um cabideiro imóvel no fundo do meu quarto; um maldito que, sob as trevas, era uma sentinela hedionda de olhos invisíveis a me desafiar, esperando pela letargia do meu sono profundo.

Em diversos momentos da infância, acordei com mãos furtivas acariciando meu rosto e arrepiando cada poro nos meus braços. Meu estômago revirava quando eu abria os olhos e sentia-o observando-me próximo à minha cama. Eu gritava e meus pais corriam para acender a luz. Ele desaparecia como se fosse um sonho lúcido; dia após dia, noite após noite, a ponto de não me deixar dormir, a ponto de não querer acordar.

Certa vez, enquanto eu assistia a uma gravação feita poucos meses atrás na igreja que meus pais frequentavam, meus pais perceberam que a dimensão dos acontecimentos tornara-se perigosamente física.

Meus pais são católicos, mas não os mesmos católicos capazes de atirar pedras em você caso não siga os dogmas que lhe são impostos. Eles são diferentes.

Eu estava ali, largado no sofá da mesma forma que qualquer criança senta para assistir televisão. Eu estava sozinho. Era uma tarde de domingo e meus pais descansavam depois do almoço, aquele cochilo da tarde.

A gravação era de uma peça feita na noite de natal do ano anterior. Várias crianças, inclusive eu, vestidas de anjinhos aos pés do altar na paróquia da minha cidade cantando alegres e sorridentes. Mas não aquela garota. Ela estava ao meu lado com olhos negros, inexpressivos. Muitos pensariam que ela estivesse somente olhando para a câmera, como qualquer criança quando percebe que está sendo filmada. Mas, não.

Ela olhava para mim. Diretamente para mim.

Minha televisão não era mais um limiar de segurança, como quando assistimos filmes de terror. Minha televisão era um canal de comunicação entre nós dois, um veículo que a menina usava para me mostrar sua existência peculiar.

Não sei quanto tempo se passou desde então, até o verdadeiro pavor me tocar. Minha respiração estacou e meus olhos arregalaram quando a boca daquela menininha abriu-se em um sorriso infernal, escancarando-se como a boca de uma serpente pronta para me engolir.

Levei as mãos aos ouvidos e cerrei os olhos em uma careta de horror. Senti seu hálito no meu nariz, doce e diabólico. Sua voz melodiosa invadiu minha cabeça e dançou com minha sanidade. Suas palavras repetiam-se nos meus pensamentos como um disco arranhado, e eu vi, pela primeira vez, o abraço da loucura me tratar com intimidade.

"Venha brincar comigo. Sinto saudades de você. Venha brincar comigo..."

Então, eu gritei.

Minha voz infantil ressoou pela casa como a sirene de uma ambulância e acordou meus pais com a emergência de um acidente fatal. Não ousei abrir os olhos, eu não queria fazê-lo, eu não queria encarar aquela criatura grotesca com os mesmos olhos dos meus pesadelos.

Meu corpo diminuto balançava para frente e para trás, demente, até ouvir os passos pesados do meu pai crescerem pela escada e sua voz grave gritar com minha mãe algo sobre remover a fita do videocassete.

Tremi quando braços grossos envolveram meu corpo frágil e a voz do meu pai expulsou a melodia infernal daquela garota da minha cabeça. O seu abraço foi a coisa mais reconfortante que eu já me lembro de ter sentido, apesar de eu não ter tido forças para retribuir.

Quando tive coragem de abrir os olhos, vi minha mãe murmurando orações com um terço e a fita no chão, pisada. O que veio a seguir, eu jamais esquecerei: a fita entrou em combustão espontânea, como se alguém tivesse despejado um galão de gasolina e riscado um fósforo. Não sei dizer o cheiro que senti, talvez fosse só o de plástico, mas lembro de ter sentido algo semelhante durante uma aula prática de química na universidade.

A partir daquele dia, meus pais deram mais atenção ao que eu dizia ouvir e ver. Fui levado a reuniões com os grupos de oração que eles conheciam, fui levado a conversas na presença com padres, pastores, benzedeiras, e participei de diversos acampamentos e encontros com outros jovens na igreja.

Hoje, 20 anos depois e afastado de todo reforço espiritual, ainda sinto resquícios da minha infância. Com o passar do tempo, fui me acostumando às vozes e às silhuetas que aparecem quando as luzes se apagavam. A presença se tornou reconfortante nos momentos de solidão, me deixando seguro como o abraço do meu pai que acabei de te contar.

Eu sinto que a presença não me abandonou e nunca abandonará. Alguém sussurrou em meu ouvido antes de eu nascer: "veja o que eu vejo". E eu continuarei vendo. Muitos idosos dizem isso é Deus concedendo a pessoas, seus anjos como proteção. Outros dizem que são visitantes mal-intencionados.

Uma coisa que minha avó me contou, uma vez, é que muitos são como eu. São agraciados desde o nascimento a nunca estarem sozinhos, pois há algo sempre à espreita, esperando o momento certo para fazer o chamado. Por isso, se você se sentir sozinho, saiba que eu sei que você também pode sentir a presença, assim como estou sentindo você agora.

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