Bioética: O Medo Da Morte e A Vida Eterna

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Os estóicos diziam que todos os processos naturais (tais como doenças e a morte) eram regidos pelas constantes leis da natureza. Por esta razão, o homem deveria aceitar seu destino.
- O Mundo de Sofia

Os epicureus diziam que para viver uma boa vida também era importante se libertar do medo da morte. "Porque ter medo da morte?", perguntava Epicuro. "Enquanto somos, a morte não existe, e quando passa a existir, nós deixamos de ser."
- O Mundo de Sofia

No livro o mundo de Sofia, as personagens Sofia e Alberto saem de um livro para o mundo real, onde passam a fazer parte do "povo invisível", que são todos os famosos personagens das histórias que os humanos criaram, como Branca de Neve, Cinderela e João e Maria. Já Hilde e Albert fazem parte do mundo real em si, são pessoas reais. Sofia sente inveja de Hilde por poder ser uma pessoa de verdade, de carne e osso, e Alberto lhe explica que, em compensação, eles do mundo invisível vivem para sempre. Diz também que a morte, para as pessoas reais, está implícita na vida como uma moeda de dois lados. Sofia, então, solenemente diz: "Mas não é melhor ter vivido do que nunca poder viver?"
- Baseado em O Mundo de Sofia

No universo da série Altered Carbon é possível transferir a consciência de alguém para outro corpo, ou "capa", como é referido no programa. Esse fato permite que aqueles capazes de pagar consigam viver além do tempo de uma só vida, colocando a mente num outro corpo. Tirando toda a discussão sobre o poder capitalista da elite em controlar aqueles menos afortunados que não podem pagar por outras novas capas (que a série também traz), sobra o questionamento de se valer ou não a pena viver tanto tempo assim. Há, obviamente, uma maioria que não vê problema nisso, colocando em jogo, por exemplo, vítimas de injustiças que acabam sendo mortas cedo demais. Porém, há também uma grande resistência e alerta para o fato de se viver demais. Nesse contexto, temos aqueles que tem registro/histórico religioso: tais pessoas não são permitidas por lei de "reencaparem" (ou reencarnarem) após a primeira morte corporal, pois isso vai contra aos ideais da religião. Outra coisa, porém, são aqueles que, mesmo sem registro religioso, são contra a longos períodos de duração da vida humana. Pode parecer um ponto frio e cruel de se apoiar, mas Quell, uma das personagens que é líder desse movimento ideológico, diz que ao prolongar tanto a vida de alguém, essa pessoa perde o que lhe é mais precioso: a própria humanidade. Na série, aqueles chamados Matusas são capazes de pagar por inúmeras capas e assim viverem milhares de anos. Só que essas pessoas que já vivem há tanto tempo, em algum momento, se perdem, se entendiam e etc., ao ponto de que o passatempo de alguns é ver pessoas desafortunadas duelarem até a morte em arenas. Eles começam a patrocinar sofrimento, os "limites" se esticam mais e mais de acordo com quantos mais anos a pessoa vive. Não há um Matusa na série que não aja de forma no mínimo duvidosa em relação aos outros: ou perdem a paciência, a compaixão, a empatia, ou a própria ética.
- Baseado na série Altered Carbon

A partir dessas quatro vertentes, podemos embazar uma discussão bioética sobre os seguintes temas: o medo da morte e a vida eterna (ou amortal). Afinal, o medo da morte presente em incontáveis pessoas, na sociedade atual, vale a pena? E valeria a pena prolongar a própria existência à custo de sua desumanização, da perda da ética e humanidade?

Comecemos pelo medo da morte. Medo este que nos assombra desde os princípios da história humana, muitas vezes relacionado a um teor religioso (como a "ida para o inferno"). O motivo e causa desse medo varia de pessoa para pessoa, e até de época para época. Atualmente, o principal temor, inclusive daqueles desconectados de qualquer fé, é o de não ter tempo de realizar seus desejos ou alcançar seus sonhos. A possibilidade da vida ser interrompida antes de "vivermos o que temos para viver" é apavorante, e pode ser também considerada deveras injusta. Mas será que esse medo impregnado em nós tem sentido ou fundamento? Porque, oras, quase tudo na natureza acaba. E é implícito, imposto para nós que, a partir do momento em que nascemos, um dia teremos que morrer - "uma moeda de dois lados". Tudo o que começa, um dia termina. E, aliás, que tamanha repulsa é essa que temos com o fim das coisas? Não seria muito mais válido, se ao invés de focarmos na tragédia que eventualmente vem, focássemos no quão bonito pode ser antes que acabe? Não é um pensamento fácil de adquirir ou sequer de aceitar em plenitude, é claro, mas por acaso deixamos de ouvir uma música só porque sabemos que ela vai acabar? Ou deixamos de viver só porque um dia não viveremos mais? Como diz Sofia, é melhor viver. É mais proveitoso tirar o foco do medo.

Porém, daí, temos um gancho para o próximo tema, que é a imortalidade: será que esse medo da morte não é o que faz de muitos bons? Será que se tirássemos a mortalidade de alguém, esse alguém não estaria automaticamente mais suscetível à maldade? Tudo bem que essa ainda não é nossa realidade. Nós ainda raramente vivemos mais do que cem anos, nosso tempo ainda é "curto" e sem possibilidade de aumento significativo. Mas com o tamanho crescimento tecnológico que a nossa sociedade vem tendo, e assumindo como motivação justamente o medo da morte, é muito possível que cheguemos a algo próximo da amortalidade, que é o ato de nunca morrermos por causas naturais, mas ainda sim estarmos à mercê de fatores externos, como um tiro. A morte, então, não estaria nunca mais nas mãos da velhice, e sim só e unicamente nas dos humanos. Isso, portanto, implica a ética. Quem deve ou não ser morto, como e quando. Não que isso já não aconteça, mas esse ato se tornaria muito mais normalizado. E o quão problemático é isso? Se viver demais acaba degradando valores como a importância da vida, isso não causaria caos? Ou o ser humano seria capaz de manter a própria decência por mais de cem, duzentos, trezentos anos?

Ambos os assuntos são complexos e extremamente profundos de serem analisados. Isso porque mexem com o tema da sobrevivência, que nos é natural pelo fato de sermos animais, mas também com o tema da vivência (sem o "sobre"), pelo fato de sermos seres pensantes. Mas, no fim das contas, o que fazer sobre isso? Ninguém merece ter a chance de viver arrancada das mãos antes do tempo, ou viver com a "ampulheta" da vida nos relembrando a todo momento de que tudo acaba. Portanto, eu digo que, nas atuais circunstâncias, uma pequena conscientização a respeito bastaria: conscientizar a si mesmo sobre o que fazer com o próprio tempo, mas também com o tempo dos outros. Não realizar, por exemplo, ações de má fé que interfiram na vida de outras pessoas, pois afinal o tempo delas é tão precioso quanto o seu. E devemos mudar, também, a pergunta de "quanto tempo temos?" para, "o que fazer com o tempo que nos é dado?". Que escolhas faremos, que valores teremos e quais ações tomaremos a cada momento, para que, no final, tenhamos um "todo" que tenha valido a pena.

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