Cozinha de cara amarrada. Corta os legumes na tábua com a faca cega, martela a carne dura feito pedra. Deixa a chaleira apitar até não suportar mais. Só pra não ouvir a TV estrondando no cômodo ao lado e o velho reclamando: Marilene, minha sopinha tá pronta, muié?
Fala sozinha: Olha o que esse djabo me fez fazer, agora quer uma sopa de batata com carne, né? Vou fazer uma sopa do teu intestino, assim que conseguir enfiar essa faca no seu buxo cheio de cana, que de tanto tu beber nem sangue nem comida tem mais, só tem cachaça.
Sentado na cadeira de balanço, o velho segura o copo com dois dedos de pinga. A casa tem uma janela e dois cômodos, mal cabe eles, mas há uma televisão que passa o jornal nacional. O volume da TV está no máximo e o velho reclama mais alto ainda. O lugar é no meio do nada e não há vizinhos por perto pra achar ruim.
Fala sozinho: Esse mundo tá é se acabando, Marilene, não tem mais gente que dê jeito, todo mundo salafrário, esses político corrupto não sabem colocar ordem no povo, aí fica todo mundo aí fazendo passeata na rua, manda esse povo pra casa, tem mais o que fazer não é? Cadê minha sopa Marilene, tá pronta?
Na boca do fogão, a mulher sua como uma porca. Marilene olha pra faca, uma peixeira das boas, porém cega. Uma expressão de ódio consome seu rosto. Ouve os gritos do marido: Bora Marilene com essa sopa que o jornal já vai começar!
Leva a cumbuca e entrega nas mãos do velho: Toma, desgraça. O velho larga o copo no chão, segura a tigela e reclama: Ai, ai, Marilene, tá muito quente. Ela se senta no sofá ao lado: Problema teu, agora come, tu que pediu essa merda de sopa, agora engole. O velho resmunga e assopra o líquido.
Marilene fala baixinho: amanhã vou ver se pego uma pedra com seu Zé do mercadinho pra amolar essa faca. O velho grita do seu lado: Tá falando o que aí sozinha mulher? Ela grita de volta: Nada não, come a sopa, infeliz das costa ôca.
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Peixeira
Short StoryA TV estronda no cômodo ao lado. O velho resmunga mais alto ainda. De cara amarrada, Marilene cozinha a sopa, cortando as batatas e a carne com a faca cega. Olha a faca com ódio, uma peixeira das boas, porém cega. Planeja-se para amanhã amolar aquel...