2 - Noah

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Noah

Há muito tempo não saía sem pretensão, sei que Apolo está me ligando, mas estou ignorando desde que notei que era ele. Ellen está sorrindo, com a colher elevada, ainda estou tonto da bebida, mas ela continua contendo o sorriso. Estamos em uma sorveteria que fica próxima ao espaço do evento.

— Já sentiu vontade de ser outra pessoa? — Sua pergunta me faz respirar no mesmo momento que estou engolindo o sorvete, o que me faz aspirar o sorvete e tossir descontroladamente. — Calma, não precisa se emocionar.

Inclino a cabeça, buscando o ar que me falta aos pulmões, como se naquele momento ela tivesse acabado de transcrever toda minha vida. Eu vivo pensando em ser outra pessoa, talvez seja exatamente o que está acontecendo aqui, estou tentando ser outra pessoa, ou estou tentando ser eu mesmo, alguém que nunca tive a coragem de ser.

Muitas vezes quis ser o cara que saia com uma garota sem esperar que houvesse uma obrigação, muitas das vezes, só queria conversar com alguém, sorrir, não sei, mas o medo de iniciar uma expectativa no outro, como via algumas colegas de faculdade reclamando, sempre me fez retrair. A vida nos machuca o suficiente para eu ser o cara que não liga no dia seguinte, não saberia explicar que não queria nada a mais que aquilo.

Não acho que Ellen vá ao menos pedir meu número.

— Às vezes — respondo, sem querer colocar tanta energia no pensamento, não quero revelar para uma estranha tudo que faz barulho, nem vou contar tudo que me faz pensar na vida, todos os meus medos e inconstâncias, como diria minha ex-namorada. — Podemos não levar esse papo para aí? Estou mesmo um pouco embriagado para isso.

— Sem problemas. — Ela prende a colher de plástico entre os dentes e seu olhar se perde por uns segundos. — Foi bom conhecê-lo hoje à noite.

Levando em conta que nenhuma conversa transitou pelo que chamo de estrada proibida, foi uma boa companhia para mim também.

— A melhor parte é ignorar quem possivelmente somos. — Sei que minha voz foi baixa, ela desce os olhos até o sorvete e esboça um sorriso. — Acho que a resposta para sua pergunta é um sim bem grande, para nós dois.

Estamos fingindo ser pessoas despretensiosas que saem em encontros repentinos. Ignorando todos os pensamentos conflituosos, as perguntas que emergem e a sensação de que não vamos poder repetir isso outra vez.

Em outras palavras: estamos vivendo o momento.

Aposto que assim como eu, Ellen também é um pouco metódica, calculista com sua vida. Ou não. Não sou o melhor leitor de pessoas que conheci.

— Está tudo bem para você? — Ela aponta para o celular em cima da mesa. — Sabe, algumas coisas não acontecem como planejadas, mas para mim faz sentido a regra de não conversar sobre nossas vidas, como disse, você está a passeio, gosto de pensar que também estou.

Quero perguntar para onde ela vai passear, mas aí seria contar algo sobre sua vida, não queremos isso. Vamos apenas falar sobre as trivialidades do mundo.

— Muitas vezes pessoas se colocam através de dores que são dispensáveis — digo sem pensar. Passei os últimos meses repensando minha vida, minhas escolhas e analisando meu cotidiano. — Vamos mudar de assunto, o que me diz? O sorvete é bom?

Ela muda de cadeira, sentando-se ao meu lado, coloca a colher no sorvete, suspende em minha frente. Primeiro analiso seus traços, seus cabelos claros que não parecem tingidos, seus olhos castanhos um pouco diferentes dos meus, mas devidamente maquiados para encarar a noite de hoje.

Meu pensamento vai até o momento que poderia vê-la sem maquiagem, como seus olhos devem se parecer sem cores sobre as pálpebras, sua cara de sono ao acordar, como seus fios finos devem se embaraçar depois de uma noite completa de sono.

Encontro PerfeitoOnde histórias criam vida. Descubra agora