Kuro.

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Outro fim de noite, ele já estava organizando a loja e suas coisas no armário para então poder ir embora. Era o encarregado de fechar tudo, e, como sempre, o cheiro de café moído permeava sua pele. Esse já era praticamente seu perfume natural após um ano trabalhando ali.

Obanai Iguro, barista de um pequeno café no subúrbio de Tokyo.

Sua rotina era a mesma desde que se mudará pra lá: trabalhar oito horas diárias moendo grãos, atendendo pseudo intelectuais - o público maior dali - que sempre faziam péssimas e mesmas escolhas sobre suas bebidas, e todas as outras coisas que trabalhar num local daqueles demandava. Às 22h podia ir pra casa.

Antes de sair, preparava à si mesmo um pequeno expresso. Caminhava aproximadamente 45 minutos todos os dias, embora o caminho de ônibus ou bicicleta encurtasse o trajeto em, no mínimo 30 minutos, preferia assim. Ele, seu café e suas músicas melancólicas no seu iPod shuffe da década passada.


Naquela noite os termômetros de rua marcavam 16ºC, não havia mais que um ou outro pedestre na rua, algumas pessoas retornando à suas casa após o trabalho ou uma cerveja com colegas.

Ao parar no semáforo, "Me pergunto quantas vezes já repeti esse mesmo trajeto, quantas vezes já tive os mesmos pensamentos, quantas vezes já queimei a ponta dos dedos com esse mesmo café." pensou. Ao olhar para cima, vislumbrou uma pesada nuvem negra, baixou a cabeça novamente e fitou as formas aleatórias da calçada, suspiro.

"Latte de baunilha, mais uma vez. Ela sempre pede isso, acho. Pelo menos pelo que reparei desde a terceira vez que ela apareceu... sempre foi isso. Isso, e um livro com marca página de alguma cor estranha..." Já faziam duas semanas desde que a mesma garota começara a frequentar o café... e a maneira com a qual ela sorria quando ele entregava sua bebida na mesa sempre o deixava pensativo. 

Ninguém lá o olhava daquela forma, todos na verdade o evitavam e sempre faziam seus pedidos ao outro barista, o que fazia com que ele sempre acabasse ficando responsável pela limpeza do saguão.

Iguro usava bandagens que envolviam toda sua mandíbula, isso somado aos olhos desiguais que tinha - o esquerdo era turquesa, o direito, amarelo - sempre fazia com que os clientes tivessem uma espécie de asco do mesmo. Não sabia sequer como o dono havia aceitado seu trabalho ali... Pensava constantemente que talvez o fato de se tratar de um senhor cego houvesse ajudado muito.

"Kanro...ji? Acho que era isso que sempre ia nas notas de seus pedidos..." Pensou enquanto atravessava a rua. Brevemente parou numa lixeira e descartou seu copo vazio, o barulho do mesmo atingindo o fundo da lata de metal o fez despertar do devaneio. "Por que estou pensando nisso? Sequer ouvi a voz dessa garota, não sei de onde ela veio... O que estou me fazendo achar? Que ela é diferente porque sorriu pra mim? Tsc, você já foi mais realista com sua própria solidão, Iguro."


Ao chegar em casa, rapidamente tirou os sapatos, deixando-os na porta. Se dirigiu ao banheiro. Abriu o registro, tirou a roupa e a jogou de qualquer jeito no cesto. Banho. Precisava chegar na cama e apagar, era esse o objetivo visto que perdera de fato seus medicamentos. Deitou-se. Respiração acelerada. Levantou.

Atravessando o quarto foi até o aquário que mantinha ali, dentro havia sua companheira Kaburamaru, uma pequena píton.

Pegou-a. Era incrível como isso o acalmava... instantâneo. Respira. Expira. Senta na cama.

Geralmente ficar na companhia de Kaburamaru bastava, mas dessa vez pegou-se novamente pensando naquela cliente... "Por que estou pensando tanto nisso? Só a vi algumas vezes... Tudo bem, ela é diferente de qualquer garota que já vi. Tudo bem, ela tem um perfume incrivelmente agradável de framboesa e baunilha. Tudo bem... sou fraco para cheiros visto que minha vista é uma porcaria. Tudo bem, tudo bem, tudo b- NÃO!" levantou-se num solavanco, assustando o pequeno animal que já havia se aninhado em seu pescoço.

Ao perceber o que estava ocorrendo ali, desesperou-se. Estava... sentindo? Já faziam anos desde que pode usufruir da sensação de sentir algo que não fosse solidão. Haviam anos que sua palheta de cores havia sido resumida ao negro. E agora... 

"Eu diria... lilás? Framboesa... qual a cor de uma framboesa? Ela tem essa cor. DROGA!" Voltou a sentar-se na cama. Kaburamaru escorregou por seu braço até sua cintura e ali se acomodou. 

Deixou o próprio corpo cair para trás na cama, permitindo com que fitasse o teto. Fechou os olhos e soltou um pesado suspiro... Não notou, mas em meio a tanta frustração - o que poderia muito bem ser medo - havia um pequeno sorriso no canto de sua boca.

Esteve aprendendo uma nova cor durante todos aqueles dias em que a garota havia aparecido, agora não era apenas preto. Framboesa. Vermelho? Não sabia como nomear aquela cor, mas sabia com todos seus nervos que ela existia, e que conflitava de frente com suas coleções de tons de preto.

Era o fim da noite de uma quarta. Todas as quintas tinham cor de framboesa.

 Todas as quintas tinham cor de framboesa

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⏰ Last updated: Mar 27, 2020 ⏰

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