O forte frescor das flores adentrava pela janela da grande sala significando que a Primavera enfim chegara à Londres. O aroma provinha do jardim onde desabrochava delicadas tulipas vermelhas que rodeavam o casarão, junto a algumas cerejeiras floridas que enfeitavam a vista. A luminosidade oriunda do Sol também se infiltrava no aposento sem pedir permissão, contrastando e desafiando aquele clima mórbido que pairava entre as figuras presentes. Em pé, abraçada ao marido, estava Lady Sarabeth Loverday. Uma mulher alta e esguia que vestia um longo vestido de bombazina preto, adornado de crepe em simples detalhes. Seu rosto abatido estava fora de vista – coberto por um véu negro –, mas suas emoções eram rasgadas para o mundo pelo modo como seu corpo portava-se: uma vez ou outra, Lady Sarabeth colocava seu lenço de mão por dentro do véu ao mesmo tempo em que fungava, se acomodando ainda mais ao lado do marido. Este, por outro lado, não demonstrava suas emoções. Estava sério diante a vida, e assim estaria diante a morte. Quem conhecia Lord Francis Loverday sabia sobre sua personalidade. Fechado, carrancudo, reservado. Sua esposa costumava brincar; comentava pelos cantos da cidade londrina que sua áurea era tão opaca quanto o terno habitual que usava.
Ao lado direito do casal estava um antigo amigo da família. Aos mínimos cuidados, o senhor Adam captava com sua máquina um registro do luto, buscando conservar a beleza e a alma das filhas dos consortes naquela placa de cobre revestida em prata – uma espécie de memorial para os familiares. As duas mulheres estavam repousadas em seus respectivos caixões de chumbo e bronze nada simples visualmente: ambos eram completamente ornamentados com detalhes que alternavam entre cores escuras e claras, além da presença de desenhos que remetiam a rosas em sua parte interior.
Lady Elizabeth Loverday era a mais velha. Sobreposta em seu caixão, estava envolvida de lençóis de seda e rosas vermelhas que mal mostravam suas vestes. Apenas seu jabô de renda branco ficava a vista. Seu cabelo castanho liso estava muito bem arrumado em um coque – como sempre costumava utilizar –, e sua face estava ligeiramente maquiada; sua pele branca como porcelana e suas bochechas rosadas elevavam um ar angelical a aquela criatura. Sua beleza salvaguardara diante da terrível epidemia que contara seus últimos dias. Não muito distinta estava a situação de Lady Madeleine, a caçula da família. Deitada sobre o caixão ao lado, e envolvida sobre seus próprios lençóis de seda coloridos junto a tulipas brancas, possuía um semblante mais sereno que a mulher anterior – não apenas pelo uso da maquiagem, mas porque mesmo em morte estava-se presente os pequenos detalhes de sua alma infantil. Diferentemente da irmã mais velha, seu cabelo cacheado castanho estava preso em um rabo de cavalo, onde alguns fios rebeldes insistiam em repousar sobre sua face.
Acomodada à poltrona revestida de couro, estava a última figura presente na sala: Lady Ophelia, a segunda filha do casal e a única que ainda os sobrava. Não estava presente quando a cólera ameaçara a vida de suas irmãs, e tampouco quando esta as levou deste mundo para as mãos de Deus – quando chegou de Paris já era tarde: não se havia mais vida naqueles corpos. Chorou e esperneou como se não houvesse amanhã, após receber a notícia de Eleonor, a governanta. Quem estivesse a visto em um momento íntimo como aquele, jamais imaginaria que era a mesma que se encontrava encostada a poltrona, esperando ansiosamente que o daguerreotipista concluísse seu trabalho. Sua aparente calmaria escondia a desolação que tomava conta de seu interior. A única coisa que entregava seu estado eram as mãos trêmulas que tentava a todo instante esconder, ocultando sobre o vestido preto de lã. Controlava sua respiração, enquanto arrumava seu cabelo castanho ondulado em frente à superfície dos olhos, camuflando as lágrimas que insistiam em esvaziar sobre o rosto.
Seu olhar seguia os atos do senhor Adam, ás vezes, mudando para a postura de seus pais. Já estava começando a ficar impaciente naquela sala: fazia pouco mais de uma hora que o daguerreotipista andava de um lado para o outro fotografando suas irmãs, e ainda não se havia terminado. Lady Ophelia começou a olhar para os lados, ansiando que algo os interrompesse para que pudesse escapar daquele cômodo que exalava perecimento.
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A Dupla Personalidade de Lady Ophelia
Historische RomaneLady Ophelia Loverday pensava que suas irmãs estavam mortas, até olhar para o próprio reflexo.