Livros matam mais que espadas

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Eles concordavam que ele era estranho. Inacreditavelmente estranho. Estranhos até mesmo para os padrões da Cidade. Não conseguiam chegar a um consenso, contudo, sobre o que mais lhes incomodavam. Uns diziam que era os longos cabelos negros que há muito não era cortado e por isso não havia um formato definido. Outros alegavam que era o desleixo com que sempre vestia a mesma camisa branca que constantemente passava a impressão de estar a um passo de sair voando do corpo. Quiçá fossem as calças escuras que tanto contrastavam com o tecido do torso. Alguns colocavam sua peculiaridade na conta do sorriso malicioso que ostentava com frequência. Certamente era o sorriso. Em geral, Linnion sorria com muita frequência, mesmo que o motivo fosse alheio a todos a sua volta. Muitos se incomodavam com o fato de nunca saberem bem sobre o que o rapaz sorria, o que frequentemente lhe conferia a aparência de saber algo secreto, cuja mera menção fosse revelar um conhecimento revolucionário para a história do mundo. Esse fato, aliás, rendera-lhe uma alcunha, a qual carregava com um misto de vergonha e ódio, por ser uma jocosidade explícita: Linnion, o Sábio! Alguns até concordavam que esse semblante lhe conferia uma aparência arrogante, como se estivesse sempre a troçar de quem quer que fosse que estivesse à sua frente, independente do status social. Outros, por outro lado, juravam que a arrogância provinha do orgulho com que sustentava o título de sábio, mesmo sem nunca ter saído de sua aldeia ou lido qualquer livro. Havia até os que diziam que ele entregava suas noites às leituras escondidas de obras proibidas. O Sacerdote Galdir, única pessoa da região cuja familiaridade com as letras permitia um julgamento explícito sobre essa opinião, assegurava na taberna da aldeia que o motivo não era terreno, mas uma questão espiritual.

– Linnion é a reencarnação de um Bobo! – Bradava o Sacerdote em todo jocoso, apenas para ver o rapaz ser o motivo de riso – é por isso que está sempre a troçar e nunca a dizer nada. Não é, Linnion? Conte-nos uma piada, anda! Há muito não desfruto de uma encenação prazerosa.

– Um Bobo, vejam só! – respondeu o rapaz com uma indignação claramente fingida – Em mim habita o espírito de um Príncipe, Sacerdote! Ora, e não é esse o motivo pelo qual todos estão sempre a dedicar atenção a mim, observando cada movimento facial que expresso na busca de algo que denuncie minha nobreza? E não é esse também o motivo pelo qual as donzelas estão sempre me espreitando com olhadelas tímidas e cheias de paixão? – Ao que as pessoas ao seu redor estouraram em ruidosos guinchos e gritos de riso, efeito provocado muito mais da bebida que pela piada.

Quando os peitos voltaram ao fluxo comum de respiração, ainda com os olhos lacrimejantes devido à algazarra anterior, Linnion lançou ao Senhor Malki uma breve olhadela, ao que o velho entendeu de prontidão, saindo de seu usual balcão com uma grande jarra em mãos.

– Quanto mais dessa porcaria você empurra para esse seu estômago, mais alegria nos dá com seus gracejos, Linnion. – Disse o dono da estalagem ao sorver o líquido lilás no copo de madeira – Mas receio que você não acordará disposto amanhã, o que me renderá problemas. Ora, se eu ficar sem minhas uvas, o que eu vou fermentar para embebedar esses idiotas? Bom, certamente se eu as substituísse por pedras e servir a esses estômagos vis água com barro não notariam a diferença, mas como eu poderia me gabar de ter o melhor vinho de Mirgei se servisse água barrenta aos meus clientes? Não, não. Fora de questão. – Então, franzindo a testa e dirigindo um olhar cansado a Linnion, emendou com uma voz terna – Vá para casa, filho, você certamente tem quem espera pelo seu retorno, diferentemente desses grosseirões.

- Estou indo Senhor Malki. Quanto ao pequeno, não se preocupe, já está dormindo e tem quem cuide dele. Hoje prometi a mim mesmo que descansaria, e é o que vou fazer, nem que isso eu tenha que esfregar o chão desse lugar usando meus próprios dedos – Ao ouvir tais palavras o estalajadeiro esboçou um sorriso satisfatório – Oh, não Senhor, não entenda de modo literal. Além do que, já estou de saída. Um homem consegue se divertir com mais coisas além de bebedeira, se é que vocês querem saber – O jovem rapaz deixou sobre a mesa uma pecúnia, valor mais que suficiente para pagar as despesas da noite. Como não havia uma moeda com um valor menor, que o restante ficasse para uma próxima vez. O que, pelos cavalos de Aldde, ele faz com tanto dinheiro nesse lugar tão ermo? Com esse e semelhantes pensamentos o garoto saiu para o luar claro.

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⏰ Last updated: Apr 06, 2020 ⏰

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A redenção do algoz - Malum LibrumWhere stories live. Discover now