Seu Jaime

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O que seu Jaime vendia ali, pertinho da morte, era a vida. Por detrás daquele balcão empoeirado, tubos e fitas e arames e alicates, sacos de massa e argamassa, areia e pedra e cimento e tijolos, no constrói e destrói de uma vida inteira anotando pedidos, pagando remessas e fazendo entregas, o que seu Jaime oferecia era um acabamentozinho aqui, uma ajeitadinha ali, uma parede a menos, um cômodo a mais porque o filho casou, o piso de cima porque a família aumentou, o quarto nos fundos porque o filho voltou, casamentos e divórcios e histórias que começavam e terminavam alicerçadas em reformas que às vezes nunca viam fim.

Era em frente ao cemitério, a loja de material de construção do seu Jaime. Mas bem em frente mesmo, espremida, resistindo há três décadas entre a profusão de floriculturas que tomavam a rua. Ele sabia bem. Chegado o dia em que ele próprio cruzasse de vez a rua e os portões de ferro do outro lado, era questão de tempo até o seu depósito ser tomado por arranjos e coroas e trepadeiras enroscadas em treliças de plástico de qualidade duvidosa. A filha era dissimulada, o genro era um sujeito mole. Mandado, partiram dele as investidas:

- E por que a gente não põe umas flores pra vender aqui na frente, seu Jaime? Tem saída.

- E vender o que todo mundo vende? Não, obrigado.

- É que também não custa nada tentar...

- Como que não custa, Jefferson?! Vai catar flor do túmulo dos outros pra vender aqui? Vai roubar dos vizinhos?

Mas eles tiveram a audácia. A filha era mesmo muito dissimulada, o genro era mesmo muito mole. Mandado, foi ele quem apareceu logo cedo com o carregamento de vasinhos de violeta. Eram só seis. Por enquanto.

- Por enquanto. Vamos ver se sai, seu Jaime. Mal não vai fazer. Quase nem ocupa espaço.

E sorria meio amarelo ajeitando na parte da frente da loja os vasinhos numa banquinha de madeira arranjada sabe-se lá onde. Seu Jaime apertava os olhos, suspirava com desgosto. Ele que não ia se responsabilizar por nada daquilo. Não ia nem botar preço. Não ia oferecer. Não ia anunciar. Só ia botar água nas plantinhas porque no fim das contas elas é que não tinham culpa de nada.

Considerava pedir pra mocinha da loja ao lado um regador emprestado quando chegou o Rafael. Era a terceira visita só essa semana. Juliana tinha vindo também, uma vez, fim de tarde, arrastando o filho dos dois com o uniforme do colégio sujo de molho de macarrão. Só pra acertar um pagamento. E reclamar. Que os pedreiros só enrolavam, que o Rafael não tomava uma atitude, que o filho era alérgico, que o purificador de ar não dava conta de tanta poeira, que naquele programa que passa de manhã outro dia falaram que bom mesmo era encher a casa com bacia, que ela não lembrava mais se tinha que encher até a boca, que a vizinha falou que água parada embaixo da cama ia dar dengue.

Pagou, reclamou, foi embora. O Rafael, quando vinha, não reclamava, só pedia. Seu Jaime gostava assim. Uns quantos sacos de areia, cimento, faltavam uns tijolos.

- E um vasinho de violeta dali, seu Jaime? Será que dava pra mandar entregar? De surpresa pra Juliana, sabe? Tá nessa reforma que não termina, não para de me encher... ainda falei pra ela que desse mês não passa.

- É que aí não sei. Vai tudo de caminhão, né. Difícil.

- Então eu levo agora, não esquenta, não. Põe aí na conta - e olhava as flores por cima, meio que escolhendo. Eram todas iguais, roxo vivo e botões de promessas, melhores para reformas do que para cemitérios.

- Vai de brinde - seu Jaime sorriu, mas o sorriso era pra ele mesmo. Pérfido. Daqueles vasinhos não brotaria nem um real, nem que tivesse que doá-los todos. Aquela filha dissimulada. Aquele genro mole. Eles que aguardassem.

Rafael pegou o vasinho da ponta, agradeceu, saiu. Seu Jaime voltou ao seu balcão, olhou o calendário de farmácia colado na parede ali do lado. Seis meses. Seis meses que o seu Walter não vinha. Não era a primeira vez que isso acontecia. Reformas que duravam cinco, dez, vinte anos eram assim mesmo, chegavam a ficar paradas por meses e meses a fio, anos até. Tudo bem. Uma hora ou outra eles voltavam, eles sempre voltavam. Reforma era um compromisso a longo prazo e seus clientes eram fiéis.

Vinte e sete anos e cinco meses. Um recorde. Era o tempo que já durava a reforma do seu Walter. Seu Jaime se lembrava do primeiro dia em que eles puseram os pés em sua loja, recém aberta àquela época. O seu Walter. E a Vilma. Vinha o homem à frente, a Vilma um passo logo atrás, espremendo-se com ele pelos corredores abarrotados, braço dado com o marido, a outra mão segurando o lenço de seda colorida preso ao pescoço. Pequena, encolhida, andorinha que passa sem ninguém ver, os olhos escuros correndo pelas prateleiras, estantes, fardos e armários, a boca aberta de quem percebe tudo diferente. Enganavam-se a filha dissimulada e o genro mole. A primeira flor a entrar em sua loja tinha desabrochado ali mesmo, diante do olhar embevecido de seu Jaime, vinte e sete anos e cinco meses atrás. Jamais trocaram palavra. Seu Jaime a aguava com os olhos à sombra do pensamento em um pedacinho de terra fértil bem escondido no seu coração. Por vinte e sete anos e cinco meses.

Seu Walter por fim apareceu, ainda naquela semana, mais barba e menos cabelo do que antes. Parecia mais velho do que seu Jaime se lembrava. E não estavam todos? Vinha só. Seu Jaime se surpreendeu. Não se conteve:

- E... e a dona Vilma?

O outro não respondeu. Não haveria escutado? Fez o pedido. Pagou. Combinou a entrega. Algo estava fora do lugar, seu Jaime podia perceber. Algo faltava. Algo de energia. De força. Algo de vida. Mas, ainda que sem energia, sem força ou sem vida, seu Walter fez o pedido, pagou, combinou a entrega. E seguiu falando:

- Eu não ia terminar, não. Ia deixar agora como está. É que não dá gosto, sabe?

Não, seu Jaime não sabia. Não estava entendendo nada aquela conversa. Ou não estava gostando nada do que entendia. Seu Walter fez uma pausa, olhou o portão imponente e derradeiro do cemitério do outro lado da rua, voltou a atenção ao seu Jaime.

- Mas vou terminar. Ela queria.

E foi embora, ainda mais velho do que tinha chegado. E não estavam todos? Ele e o seu Walter. A Vilma, não.

Naquela tarde, seu Jaime fechou a loja mais cedo. Atravessou a rua. Entrou no cemitério. Levava consigo um vasinho de violeta.

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⏰ Last updated: Dec 01, 2020 ⏰

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Seu JaimeWhere stories live. Discover now