ÁGUA FRIA

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Na manhã seguinte, a porta do quarto foi aberta abruptamente por dona Glória e a luz, acesa.
-Nilo, não é hoje que você vai fazer aquela prova do concurso? – perguntou a mãe. Ainda deitado e enrolado no lençol, fez sinal de positivo com a cabeça e perguntou ainda sonolento: - Que horas são?
A mãe respondeu: - Sete e meia.
Sentou na cama. - A prova começa nove horas. Acho que dá tempo.  – disse antes de levantar.
A mãe deu as costas e foi preparar a mesa para o desjejum do filho.
Nilo levantou e correu para a ducha, quando finalmente acordou ao primeiro jato de água fria. Enquanto vestia uma calça jeans e uma camiseta branca, a mãe arrumava o café na mesa. Nem sentou na cadeira para se alimentar. Engoliu uma fatia do pão de forma com maionese e tomou um copo de café instantâneo com leite. Escovou os dentes em menos de quinze segundos, apenas para melhorar o hálito, e saiu correndo.
Ao entrar no ônibus, a catraca girou e o cobrador devolveu o troco ao rapaz que seguia para prestar o concurso público para o cargo de auxiliar técnico de controle de zoonoses. Estava bastante ansioso. Havia estudado o suficiente apesar de ainda não saber o que era de fato aquela profissão. Sua distração dos últimos dias fez com que esquecesse a data da prova e, por isso, não tinha estudado no dia anterior. Nilo ficava mais tenso que o normal só de pensar na possibilidade de, no momento do exame, sua mente escurecer e esquecer a equação de primeiro grau, da regra de três, do ‘cê’ do ‘cedilha’, dos dois ‘esses’ ou do ‘zê’. Já sentado no banco do coletivo, tentava relaxar ao ouvir trechos de músicas conhecidas que tocavam nas estações do rádio. O ônibus estava próximo à parada do campus da Universidade, onde saltaria. Ele não percebeu a proximidade do veículo com o ponto depois de embalar em uma canção que lembrava Camila, sua ex-namorada e também o primeiro amor de sua vida. Rememorou o baile de encerramento do ano no pátio da escola quando tocava aquela música e a convidou para dançar como nos tempos de seus avós. Para a sua surpresa, a moça aceitou e naqueles infinitos minutos declarou seu amor, beijou-a e começaram a namorar. 
Já estava acostumando com a ideia da separação, mas era capaz de lembrar os acontecimentos mais importantes do namoro de vez em quando. Tinha resolvido abandonar a moça por causa da insistência dela nas conversas sobre noivado e casamento, assuntos proibidos para ele. Achava que eram muito novos e, sem perspectivas profissionais, acreditava que não daria certo. Logo depois da separação, Camila começou a namorar Elias, o melhor amigo de Nilo até aquele dia, mesmo sabendo que a amizade entre os dois era muito forte e isso provocaria algum tipo de conflito. Elias era como um irmão e isso fez com que Nilo tenha ficado mais disperso e depressivo que o normal nos últimos dias.
Naquele momento, o rapaz abriu os olhos e viu pela janela do coletivo passar a Portaria Dois da Universidade. Pediu ao motorista o favor de parar além daquele ponto e este, por uma questão de humor talvez, atendeu ao pedido. Nilo agradeceu, desceu os degraus da porta traseira do coletivo e correu em direção ao portão que já estava sendo fechado por um homem baixo que usava óculos e levava um crachá pendurado no pescoço.
Apresentou a cédula de identidade, o comprovante da inscrição no concurso e, finalmente, entrou. Caminhou pelos corredores junto a outros retardatários a procura da sala 11 que ficava no segundo prédio.  Na entrada da sala, os documentos foram confirmados mais uma vez pelo fiscal que indicou a cadeira reservada.  Próximo à cadeira, pôde observar a descrição que o identificava em uma etiqueta colada na carteira: NILTON LUIZ TAVARES, INSCRIÇÃO 12475. Sentou e sentiu um frio na barriga. Aquele era o primeiro teste prestado por ele fora da escola. Nunca havia passado pela cabeça em ser um “concurseiro”. Na verdade há uns anos atrás não pensava nem em prestar o vestibular.
No quadro branco, escrito com tinta vermelha, estavam as instruções para o decorrer da prova. Os horários de início e término não estavam preenchidos até que entrou uma senhora loura, um pouco gorda. Usava óculos e carregava alguns pacotes nos braços e preencheu as lacunas: O tempo, que foi iniciado às 09h05min. Estava previsto para terminar exatamente 12h05min. . Foi autorizado então o início da prova. O silêncio reinava e cada concorrente traçava sua estratégia para conseguir responder com lucidez as mais de cinquenta questões de matemática, português, conhecimentos gerais e conhecimentos específicos para o cargo, além de concluir uma redação descritiva com tema livre. 
Leu a prova. Respondeu uma, respondeu duas, respondeu três questões e assim, sucessivamente. Finalmente chegou o momento de desenvolver a redação. Escolheu como tema a manchete de um jornal que viu pendurado pela manhã na banca situada na esquina da rua de sua
casa: ‘A ESCALADA DA VIOLÊNCIA NAS
GRANDES CIDADES’. Concluída a prova, Nilo já estava exausto, mas esperançoso.
Saiu pelo portão da Universidade com uma sensação boa de que uma daquelas 35 vagas seria dele. Estava com fome, porém ainda distraído com a novidade. Já imaginava como seria o trabalho. 
Sabia que sua casa estava longe dali. Teria que esperar ainda o ônibus que não tinha tanta constância de fluxo nas tardes de sábado. Avistou uma feira livre, colocou os fones do aparelho de mp3 nos ouvidos e seguiu para comprar um pastel de carne com queijo – seu recheio predileto - e uma garapa com gelo e limão.
Atravessou uma praça, local ermo que servia de atalho para chegar à rua que dava na feira quando sentiu de leve um toque no ombro. Foi muito fracionado o tempo entre o olhar para trás e o estampido da arma de fogo cujo projétil o atingiu.  Sua vista escureceu e os sentidos sumiram. O bandido pareceu atirar sem querer. Provavelmente atirou no susto com o movimento rápido da vítima. Se pretendia assaltar, não conseguiu levar nenhum pertence de Nilo. Teve que sair correndo para não chamar ainda mais a atenção das poucas pessoas que circulavam a uns noventa metros dali. 
Nilo foi socorrido, inicialmente, por estudantes da área de saúde da faculdade que, coincidentemente, circulavam pela região. Eles chamaram os socorristas que chegaram com a ambulância e levaram o rapaz para o hospital. 

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