• C A P Í T U L O VIII •

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A imagem da mulher que me amou e que me deu a vida, duas vezes, afagou minhas memórias pela noite inteira. Porém, da mesma forma que meu âmago se aquecia por tantas lembranças do verdadeiro amor entre mãe e filha, minhas veias vibraram dolorosamente em pesar, torturando minha alma amargamente por perder um, de quem eu mais amei.



Os feixes de luz cruzaram pobremente a vidraça da janela trazendo consigo o fragor das pesadas gotas da chuva, agressivas contra o vidro e a natureza lá fora, que me fizeram despertar assim que presenciei a morte mais uma vez em um sonho. Por sorte, mesmo com a visão embaçada e sonolenta, eu testemunhei o corpo de minha mãe carregada pelo rei, numa tentativa falha de sair sem ser despercebido.

— O que está fazendo? — esfreguei as vistas com uma das mãos, detendo o andar de meu pai entre a batente da porta. Examinei aquele corpo pálido vestido pelo tecido rosa e bufante em seus braços, onde o rei mal conseguia segurar cuidadosamente. O cabelo cacheado e acobreado chegavam na altura das coxas dele e o braço delicado estava estendido, disperso. O queixo fino estava erguido devido a nuca apoiada sobre o antebraço masculino deixando a cabeça suspensa dentre aquela desordem, não me permitindo enxergar o rosto daquela que me deu a luz. Vê-la novamente me trazia a lembrança do passado, e a amarga dor da culpa pela sua morte. — Onde vai levá-la? — balbuciei entre o pesar de uma lágrima.

O topo das madeixas amarronzadas ficou visível com o tombar da cabeça de meu pai, enquanto lentamente soltou um suspiro abafado. Por que os criados não estavam a preparando para um velório? O que ele pretendia em sair naquela manhã exaustiva com minha mãe em seus braços? Ergui meu corpo rapidamente ficando de bruços na cama para averiguar aquela situação com mais precisão. Estava muito estranho.

— A levarei para a Ilha das Maravilhas. — franzi o cenho totalmente incrédula, ao mesmo tempo que meu pai se virou para mim com os olhos carminados e afogados em lágrimas. — Era seu desejo, Clara.

Aquilo não fazia sentido.

— Por que ela ia querer ficar em uma ilha? — desacreditada, fixei as vistas nele buscando qualquer gotícula de exatidão em meio de suas balelas, mentiras. Aquilo não podia ficar mais estranho.

— Você e suas perguntas. — soltou mais um suspiro. — Aprenda minha filha, há respostas de que não precisamos... É para o nosso bem.

— Eu nunca ficarei bem em meio de mentiras.

Quando me dei por conta, estava eu com o rosto úmido pela trajetória das lágrimas. Eu não aguentaria, não me permitiria ficar novamente afastada dos assuntos, não mais. Não era justo. Todavia, entendia que muitos dos acontecimentos eram ocultados para minha proteção, para me privar de mais sofrimento e distrações que deixasse o reino a mercê da rivalidade. Eu devia me ocupar com as leis do parlamento e me dedicar em ser a rainha que eu devia ser. Pois para o rei, tudo o que havia transcorrido supostamente não tinha mais concerto, tampouco uma expectativa de vida. Era o que asfixiava sua solidão, sufocava sua amargura, em uma ultrajante eterna melancolia. Presenciar toda aquela angústia, acabava com qualquer brecha de sossego no meu coração. Talvez fosse por isso, ou a certeza de que aquele era o motivo de sua pretensão ao sair sem ser despercebido, sem se despedir de sua única filha.

— Não se preocupe, querida. Ficaremos... — pausou, repensou, e piscou uma par de vezes. — Ela estará segura com as fadas. — parou seu olhar castanho, encarecido diante dos meus como sinal de despedida.

Encarei aquele que me devia a verdade e não, eu não me confortaria em deixa-los partir sob aquela manhã inusitada. Antes que tomasse diante com seus passos, eu abruptamente me pus de pé assustando o homem e detendo seu andar, deixando um espaço pequeno entre nós.

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