Nova Cidade

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    Eles tinham mesmo que me arrastar com eles? Quer dizer, não era uma mudança de verdade. Só estavam indo para outra cidade por causa de um cometa esquisito que passa pela terra todo mês e que só pode ser visto na tal cidade. Eu agüentaria um mês sem eles, tenho dezessete anos. Eles não perceberam todos os meus sinais? Assim que completar dezoito anos vou embora.

    Não odeio meus pais, só que nós não combinamos. Eles são água e eu sou vinho. Somos muito diferentes. Quando estamos no mesmo cômodo nós podemos dizer que não estamos juntos. Estamos em sintonias diferentes. Enquanto eles pensam em suas pesquisas eu penso no vazio que eu sinto desde criança.

    -Falta muito tempo? –Perguntei olhando pela janela.

    Já estávamos naquele carro tinha mais de uma hora. A civilização já tinha ficado para trás. Do lado de fora eu só via árvores, muitas árvores lado a lado. Eles tinham dito que a cidade ficava a menos de uma hora de distância.

    -Você vai poder ver seus amigos todos os dias. –Minha mãe disse quando estava me dizendo os motivos pelos quais precisávamos mudar. Logo depois disso eu a corrigi. Não tinha amigos, tinha uma amiga. Abigail. Somos amigas desde que comecei a freqüentar o psicólogo. Ela estava sempre lá na fila esperando para ser atendida. Então começamos a conversar e hoje não consigo imaginar minha vida sem ela.

    -Falta pouco. –Meu pai disse sem tirar os olhos da estrada. –Mais alguns minutos e estaremos lá. Vai valer a pena.

    Revirei os olhos depois de socar a cabeça na janela. Não tinha sido minha intenção socá-la, mas isso acabou deixando o meu movimento bem mais dramático. Enfatizando a minha infelicidade com a mudança.

    Minha mãe estava perdida em vários livros sobre cometas. Achei melhor não puxar assunto com ela. Se eu o fizesse ela começaria a discorrer sobre cometas e sua importância para a vida na terra. Eu não podia lidar com isso em um lugar fechado. Para onde eu correria?

    Peguei o celular.

    Eu mandaria uma mensagem para Abigail pedindo para que ela mandasse um míssil teleguiado para acabar com o nosso carro, mas não tinha sinal na estrada. E isso porque a minha operadora tinha cobertura nacional. Pelo menos eles se gabavam disso em todos os comerciais.

    Eu me senti pior do que eu já estava me sentindo. Estava indo para um lugar no qual o celular provavelmente não funcionaria. Não sou nenhuma viciada em tecnologia, mas eu preciso ter o meu celular funcionando perfeitamente. Eu poderia ouvir músicas, mas e quanto as minhas pesquisas? Gosto de poder fazer pesquisas, gosto de me manter informada em relação ao que acontece no mundo...

    -Tem energia elétrica nesse lugar? –Perguntei.

    -Sim. –Meu pai disse. –Para onde pensa que estamos indo?

  -Para o meu maior castigo. –Acabei falando ao invés de simplesmente pensar.

    -Não é nossa intenção. –Meu pai disse. –É uma coisa importante para nós. Nossa vida se resume a cometas e ter essa cidade no Brasil é uma benção...

    -Se a vida de vocês é baseada em cometas não deviam conhecer essa cidade a mais tempo? –Perguntei. Era uma pergunta válida, não? Minhas pesquisas são superficiais e eu não deixo buracos como esse que eles tinham deixado.

    -Estivemos sempre ocupados. –Meu pai disse. –Sempre que marcávamos de vir para cá alguma coisa acontecia. E o cometa aparece sempre no último dia do mês.

    -No mês passado...

    -Sua avó morreu. –Meu pai disse.

    -E no mês retrasado...

    -Você sofreu um acidente.

    Não foi bem um acidente. Bem, foi, mas eles exageravam a coisa toda. O que aconteceu foi que eu estava cansada de mim mesmo, da mesmice da minha vida, então peguei a chave do carro deles e saí pela cidade com Abigail. Até aí está uma coisa que muitos jovens fazem, não? Mas o grande problema é que eu não sei dirigir. Então acabamos batendo na primeira curva. Ninguém morreu. Pra dizer a verdade: ninguém se machucou. O carro ficou arranhado, mas meus pais decidiram exagerar e nos levaram para o hospital. Passamos a noite lá.

    Coloquei o fone e fechei os olhos tentando imaginar que não estava indo para um lugar estranho, longe de tudo. Enquanto o Paramore tocava eu me imaginava em um lugar bom.

    O que é um lugar bom?

    Bem, um lugar com poucas pessoas. E essas poucas pessoas são legais. Estão focadas em suas próprias vidas, então não tem tempo para ficar tomando conta da vida alheia. O sol não existe no meu lugar bom, o céu está sempre cinzento e o frio é presente sempre. Tem árvores variadas, e animais também.

    Eu estava apenas pensando, mas consegui sentir o vento fazendo meu cabelo vermelho voar. Amo minha imaginação. Infelizmente ela foi um dos motivos que fizeram com que meus pais me levassem ao psicólogo.

    Bem, não infelizmente. Eu conheci Abigail graças ao psicólogo.

    -Precisa sair do seu mundinho, Liana. Precisa fazer amigos que não sejam os imaginários. O que acha que vai conseguir sendo introspectiva? Você está viva, então vá viver... –Minha mãe dizia sempre que me via trancafiada com algum livro.

    Só que ela não entende que respirar não quer dizer estar viva. Eu respiro desde que me entendo por gente, mas comecei a viver apenas depois de conhecer Abigail. Sou novíssima com essa coisa de viver.

    Três músicas tocaram antes de eu abrir meus olhos.

    Quando os abri eu desejei que aquilo fosse um pesadelo. Fechei os olhos com força e voltei a abri-los depois de um tempo.

    Não era um pesadelo. Bem, pelo menos não era eu quem estava imaginando. Era um pesadelo de verdade.

    -É aqui. –Meu pai disse antes que eu perguntasse.

    Olhei pelo retrovisor e vi que ele estava muito animado com tudo aquilo. Minha mãe também estava animada, ela até largara o livro que estava lendo.

    -Só pode estar brincando comigo. –Falei.

    Aquilo estava bem longe de ser o meu lugar bom.

    As pessoas ali não pareciam ser legais. Todas ficaram paradas olhando para o nosso carro enquanto passávamos pela rua ladeada por casas de madeira, algumas estavam caindo. Era difícil imaginar que alguém pudesse viver ali.

    E isso nem era o pior. Senti como se estivesse entrando em um filme de época devido às roupas das pessoas. Sabe os Amish que geralmente aparecem nos seriados dos Estados Unidos? As pessoas se vestiam mais ou menos como eles. Mais ou menos não, exatamente como eles.

    -Isso é brincadeira. –Falei. –Estão apenas me pregando uma peça. Mas já devo dizer que isso não é legal. Eu não estou me divertindo. Sabem como eu odeio esse tipo de brincadeira...

    Meus pais estavam entorpecidos com aquilo. Entorpecidos demais para me darem atenção.

    A única coisa que me deixava aliviada na coisa toda, se é que eu posso dizer que fiquei aliviada naquele lugar, foi o fato de ter postes de luz na rua. Não se pareciam nada com os que estavam na minha cidade, mas tinha lâmpada neles. Era um bom sinal, não?

    Baixei a cabeça e tentei me concentrar na música que estava tocando no fone. Tudo para me mandar para longe daquele lugar, mas nada era forte o bastante para me fazer esquecer onde eu estava.

    Aquele seria o meu maior pesadelo.

    Eu tinha certeza.

Nightmare - O CometaOnde histórias criam vida. Descubra agora