Imagens

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"Eu pensei em desistir hoje de novo, mãe. A senhora me perdoa?"
Ela escreveu em um post it com um lápis que media menos que seu dedo mindinho e colou na porta da geladeira, mesmo sabendo que a sua mãe jamais leria a mensagem. Ela se moveu lentamente até o armário de bebidas e, na mesma velocidade, misturou um pouco de tudo o que havia e seguiu para o sofá.
Ali, ela conseguia sentir a presença de seus pais, sentados no mesmo cômodo, em suas poltronas favoritas - o pai à direita, perto da televisão, e a mãe à esquerda, onde ficava perto da janela e podia escutar o canto dos pássaros, apesar da sua surdez parcial. Ela conseguia ouvir quase que perfeitamente as reclamações dos seus pais por causa do copo em suas mãos - a mãe se chatearia por não gostar de bebidas ("isso não é coisa de mulher direita, o que vão pensar de você?"), enquanto o pai só se importaria com o fato de ela ter mexido em sua coleção de bebidas. Ela escutava a respiração pesada da mãe e o barulho que o controle remoto fazia a cada vez que seu pai mudava o canal da televisão (o que acontecia, aproximadamente, a cada 3 minutos e 42 segundos, de acordo com as contas dela). Conseguia até mesmo ver a mãe revirar os olhos e suspirar, decepcionada, a cada xingamento que o pai cuspia ao juiz do jogo de futebol.
Tudo isso aqueceu seu coração e ela abriu um sorriso, mas logo aquele calor aumentou a ponto de queimar e transformar tudo em cinzas. Seu peito doeu e ela o apertou numa tentativa idiota de parar a dor. Lágrimas correram por seu rosto e ela juntou todas as suas forças para jogar o seu copo no chão, espatifando-o e alastrando o cheiro de álcool por toda a sala.
Péssima ideia. A imagem da mãe lhe surgiu, seus olhos esverdeados quase saltando do rosto, em uma mistura de surpresa, desaprovação e preocupação - com o carpete, é claro. "O que estava na sua cabeça? Abre a janela aí, vai. Anda, menina, o que você está esperando? Quer que eu vá e faça isso pra você?".
Depois de algum tempo, ela havia deixado de cogitar se aquilo era real ou não e só obedecia a voz incessante de seus pais. Às vezes seu pai a mandava parar de vagabundear e buscar um emprego, e todas as manhãs, sua mãe a acordava pontualmente às 7 horas. Aquilo tudo ocorria sempre, repetidamente, e talvez por isso ela não dava a menor importância para quão real aquilo seria.
Quando seu vizinho entrou correndo pela porta da frente - que sempre ficava destrancada por ordem da mãe dela -, ela ainda estava parada com os olhos fixos nos cacos de vidro e na poça de álcool no chão, mas a mente vagueava por entre seus densos pensamentos. Ele passou por ela e abriu a porta de vidro da sacada. Então, parou em frente a ela e a segurou pelos ombros, sacudindo-a de leve. Assustada, ela o cumprimentou, fazendo uma pequena reverência com a cabeça sem saber o porquê de ter feito tal gesto.
- Você precisa parar de quebrar as coisas desse jeito - ele apontou para a sujeira no carpete enquanto ainda a segurava pelo ombro com a outra mão - E precisa aprender a trancar essa porta!
- Não posso - ela respondeu, sentindo-se um pouco acuada, como uma criança recebendo uma bronca - A minha mãe manda eu deixar destrancada, caso aconteça algo comigo...
Os olhos dele passaram de um mar pacífico para um inferno voraz e sanguinário; ele já havia perdido a conta de quantas vezes brigara com ela pelo mesmo motivo naquele último mês. Mas o cheiro intenso o nauseava e o olhar indefeso da garota fez com que a compaixão tomasse conta do miúdo corpo do porteiro. Ele apenas suspirou fortemente e a empurrou para a sacada.
- Desculpa - ela disse após alguns minutos - eu só queria que eles fossem embora.
- Eles já foram.
- Eu queria que eles fossem embora de uma vez - ela se preparou para quebrar o vaso da orquídea da mãe, mas o porteiro segurou a mão dela até que ficasse vermelha. Ela, então, desistiu e acrescentou - e por completo.
O velho porteiro já havia esgotado todas as suas palavras sobre o assunto. No horizonte, o sol nascia, enchendo de luz as paisagens e tornando-as ainda mais bonitas, mas não fazia o mesmo com os corações machucados. Ele sentiu vontade de comentar algo sobre esse cenário, mas teve medo do que ela poderia responder, então apenas continuou calado.
Mas, mesmo que ele falasse, ela provavelmente não responderia, nem ao menos escutaria. Sua cabeça estava em outro lugar. Ela pensava no que seu primo mais novo perguntara a ela no dia da sua formatura da faculdade ("como é o sucesso?"). E, olhando para cada tom alaranjado que tocava as casas daquele bairro imundo, ela analisava toda a sua vida e continuava sem saber como responder a pergunta daquela criança. Seu pai costumava dizer que o sucesso tinha uma pontualidade britânica e ela pensava que, se fosse assim, seu relógio deveria estar completamente desregulado.
- Porque a gente não pode fazer homenagem para as pessoas enquanto elas estão vivas?
- A gente pode.
- E porque ninguém faz?
A pergunta ecoou na cabeça do porteiro, apesar de ele quase nunca levar a sério nada do que aquela mulher dizia. Eles ainda encaravam a paisagem, que se tornava cada vez menos laranja, dando lugar para um tom amarelado e muito claro, incomodando os olhos deles e fazendo-os darem as costas para a luz. Parados dessa forma, o cheiro da bebida logo os alcançou; o porteiro voltou a sentir náuseas, mas a mulher só pensava em formas de recuperar aquele líquido precioso que encharcou o carpete.
- Você precisa dar um jeito na sua vida. É cedo demais pra tudo isso. Você acorda cedo todos os dias para ficar bêbada e quebrar as coisas. Quanto tempo mais você acha que os outros vizinhos vão continuar relevando toda essa bagunça? Se você ganhasse um real pra cada reclamação que já recebeu, talvez conseguisse me pagar os 3 meses do seu aluguel que estão atrasados.
- Talvez fosse melhor se me expulsassem logo daqui.
- Você é muito difícil, não sei mais o que fazer com você - o porteiro suspira, enquanto desviava dos cacos de vidro do chão para conseguir sair do apartamento - e vê se limpa essa sujeira.
Com a saída do homem, a garota esperava ficar sozinha, mas as insistentes imagens não permitiram. Ao fundo, ela conseguia ouvir o riso das crianças, que corriam animadas pela pequena sala de estar - ela lembrava de como sua mãe se irritava com isso, amedrontada que os pequenos derrubassem sua coleção de porcelana. Antigamente, eram poucos fins de semana em que a família se reunia, mas, para ela, sempre havia sido muito mais do que necessário.
Aquele lugar que ela costumava chamar de lar ficava abarrotado, era impossível andar e, às vezes, parecia que também não dava nem mesmo para respirar. As pessoas a irritavam: suas vozes - altas demais -, o cheiro de comida por todo o lugar e, principalmente, o rastro de sujeira que todos deixavam para trás, que, como de costume, seria função dela recolher.
Mas de todos os seus familiares, a mais memorável - e irritante - era a tia Amélia. O seu constante e piedoso sorriso irritava a garota. Ela tinha uma enorme necessidade de sempre tentar chamar a atenção de todos para si e de não permitir que mais ninguém falasse. A garota poderia jurar que bateria naquela mulher e a estrangularia se precisasse passar mais que 5 minutos ao lado dela.
E, mesmo agora, o excesso de enfeites na casa a sufocava. Porque ela ainda não se desfez deles? Poderia muito bem quebrar todos. Era difícil achar qualquer coisa no meio dos inúmeros coelhinhos e ursinhos de porcelana. Ao lado de um pequeno elefante, ela encontrou seu maço de cigarros. Achar seu isqueiro já seria um outro desafio.
Ela achava incrível como ela passava todos os seus dias naquela mesma casa, mas, ainda assim, parecia não reconhecer aquele lugar. Todas as vezes era como se ela entrasse em um novo mundo - e este não era um mundo do qual ela gostava.
Ela acende o cigarro ainda dentro de casa - um ato de revolução contra o conservadorismo da mãe. Por anos ela fumou escondido e, agora, ela tinha que se esconder apenas do fantasma da sua mãe; dos males, o menor.
No caminho de volta à varanda, ela, mais uma vez, faz uma breve parada no armário de bebidas. Não havia mais copos de vidro e ela teve que se contentar com um copo de plástico rosa com desenhos de unicórnio que algum de seus primos deveria ter esquecido ali. "Que idiotice", ela pensa enquanto decide se ri da situação ou se a usa como desculpa para se lamentar ainda mais da sua vida.
Ignorando os milhões de conselhos que o porteiro já deu a ela - um comportamento que já havia se tornado um hábito -, ela se sentou na grade da sacada, com as pernas penduradas em direção à rua. Que mal haveria se ela caísse dali?
Era daquele lugar que ela conseguia ouvir o canto da senhora do andar de baixo e a discussão entre o casal do apartamento de cima - era engraçado sentir o contraste entre os dois andares. A doce melodia - que acompanhava a rotina diária de faxina da idosa todas as manhãs -, preenchia o ambiente e quase fazia a garota se esquecer dos seus problemas. Dava, inclusive, para ignorar os gritos ou as buzinas de motoristas já enfezados àquela hora.
Os olhos dela acompanhavam a fumaça que saía do seu cigarro, se dissipando lentamente enquanto cobria a visão dos prédios e das ruas. Observando a paisagem, ela sentia que a calma ocupava cada pedaço de seu corpo. Ainda de costas para o interior da sua casa, ela fingia que conseguia ignorar os sentimentos que aquela casa trazia.
Com as constantes aparições de seus pais, ela sempre imaginou que nunca mais sentiria o habitual isolamento doendo em seu peito: estava sempre acompanhada dos conselhos fora de hora e das represálias insistentes. Mas o convívio com essas visões mais aumentava a dor do que o contrário; a cada lembrança ela sentia um tapa na cara, cada vez mais forte - "essa vida não pertence mais a você, se contente com o que tem agora". E aquele agora não era nada agradável.
Mais uma tragada e ela percebe que estava sem o seu cinzeiro; sua mãe brigaria se ela usasse as plantas no lugar? "Melhor não", ela bateu de leve o cigarro na barra de ferro em que estava sentada. Ela observou o vento levar as cinzas para longe e esperava que o mesmo acontecesse com todos os sentimentos que estavam dentro dela. Ela conseguia sentir eles se tornando um bolo dentro do seu estômago.
A cada novo gole, ela pensava em seu pai: quão bom seria se eles estivessem ali, juntos, bebendo aquela mistura ruim e reclamando da vida? Lógico, ela ignorava o fato que isso jamais aconteceria, já que seu pai não suportava a ideia da sua filhinha perfeita beber. Mas, depois de tantos anos ouvindo todos comentarem o quanto seu pai era uma boa companhia para tomar um copo de álcool, ela não conseguia tirar da sua cabeça a ideia de que aquele momento poderia ser a solução para os anos de desentendimentos entre os dois.
E, naquele momento, seu pai estava ao lado dela; eles dividiam um cigarro e riam, bêbados. Eles comentavam sobre os carros que passavam pela rua, imaginando quando teriam condições de comprar um. Era um bom momento, mas ela sabia que era apenas uma ilusão, uma calmaria antes do tsunami. Mais uma vez, havia lágrimas escorrendo por seu rosto. Pela pequena quantidade de água que ela bebia, passando o dia todo bebendo álcool, ela imaginava que suas lágrimas eram feitas de whisky.
- Quer um chá, menina?
Ela se assustou, teve medo de ser sua mãe, de novo. Mas, atrás dela, não havia ninguém. A voz vinha da senhora do apartamento debaixo. A garota negou a oferta, se surpreendendo com a bondade da mulher - estava acostumada demais com a brutalidade, não conseguia crer que era possível alguém ser bom com ela. E isso a fez chorar um pouco a mais.
- Tem certeza? Algo quente pode esquentar seu coração e te fazer bem. Um bom chá resolve tudo.
A senhora não desistia. Olhando para baixo, a garota podia ver os olhos castanhos e o cabelo branco da mulher; ela se apoiava nas grades da sua varanda para poder ver melhor a garota. Ela não conseguia parar de pensar que a bondade da velha era apenas uma desculpa para encontrar uma boa fofoca para o café da tarde com as outras vizinhas - um evento que apenas a garota não era convidada, provavelmente porque os problemas que ela arranjava sempre eram o motivo das conversas.
No fundo, ela queria que fosse verdade, que um chá quente poderia resolver toda a bagunça de dentro dela. Mas aquela era uma questão que nem o álcool conseguia consertar. De que forma a sobriedade poderia curá-la? O longo silêncio dela fez a senhora perceber que ela não estava a fim de ter companhia.
- Tudo bem, qualquer coisa me chame. Estou sempre aqui embaixo - a senhora pegou sua vassoura para voltar a varrer sua casa, mas olhou para cima uma última vez - você sabe que você não é normal, não sabe? Procura ajuda, minha filha.
Ela realmente não queria o chá, nem mesmo os conselhos da vizinha, mas ver alguém desistindo de ajudá-la sempre era uma dor. Não era tão frequente que alguém oferecesse ajuda para ela, mas ela sempre negava. Quando aceitava, ela sempre só conseguia pensar "você está aqui agora, mas quanto vai demorar para você seguir o mesmo caminho que todos fizeram? Quanto tempo falta para você desistir de mim?". E, no final, todos desistiam; ela era difícil demais de lidar, ninguém sabia o que fazer.
Ela se manteve naquela mesma posição até o início da tarde. Ela gostava de observar o céu, um hábito que herdou da mãe. Ela se lembrava das noites em que se sentavam juntas no chão da varanda e caçavam estrelas cadentes; elas nunca acharam uma. Ela esperava a noite chegar para olhar para cada estrela e seguir sua busca. Mas, naquele momento, ela olhou para trás - os móveis vazios, a casa parada, o silêncio ecoando por todos os lados -; e ela se sentiu tão sozinha quanto uma estrela cadente.
Sua mãe sempre dizia a ela que as pessoas são árvores e que o sofrimento de um corte nem sempre significava que ela iria cair; às vezes ela podia apenas estar sendo aparada para crescer com mais força. Porque, então, ela sentia a queda tão perfeitamente? Ela queria apenas conseguir aceitar seu destino, ninguém jamais a ajudaria, sua vida nunca mudaria. Ela conhecia bem a sensação de ver a sua vida caindo de um precipício enquanto todos à sua volta estavam em pé.
Ela sentiu uma mão em seu ombro e um cheiro doce. A velha senhora ainda não tinha desistido por completo e estendia um copo de vidro esverdeado com chá para a menina.
- É camomila. Vai te acalmar - a senhora disse enquanto se sentava, com dificuldade, na cadeira ao lado da menina.
Em seguida, olhou com uma cara estranha para o carpete molhado, ainda coberto por vidro, imaginando muito bem o que teria acontecido ali. A garota olhou para o copo de chá em sua mão esquerda e, depois, para o copo de álcool da sua mão direita. Rapidamente, sem pensar muito, ela virou o líquido que a idosa havia dado para ela no copo de unicórnio.
- Eu não acho que seja assim que isso funciona... - a idosa passou a mão na testa, em desaprovação, e pegou de volta o seu copo com a outra mão.
- Juntar duas coisas que ajudam vai resolver tudo mais rápido. Destrua o que te destrói, não é o que dizem? - a garota disse bebendo um grande gole daquela mistura, que estava ainda pior do que a anterior.
- Quando dizem isso e essa coisa é você mesma, eles não querem que você acabe com a sua vida, menina. É só você destruir o seu jeito de ser, você está sempre se destruindo. Você pode mudar pra melhor - ela falou enquanto tentava, inutilmente, tirar a bebida da mão da mulher e repetiu sua fala de antes - você sabe que precisa de ajuda, não sabe?
"Não acho que isso vai me ajudar, eu já me perdi completamente de mim mesma", ela pensou em responder, mas preferiu ficar quieta para a senhora não a achar mais louca do que já devia achar. Agora, talvez finalmente desistindo, a senhora se levantou, bateu de leve nas costas da menina e se foi, sem dizer mais nada.
Logo que a porta se fechou atrás dela, ela ouviu sua mãe na cozinha. Há quanto tempo ela não comia porque esperava que sua mãe preparasse a comida para ela? O álcool era tudo que seu estômago recebia há dias. Ela esperou que sua mãe a chamasse, mas meia hora se passou e nada. Enfim, ela estava só.
Seu corpo começava a doer por passar tanto tempo sentada no mesmo lugar, mas havia ainda um último evento que ela queria ver antes de sair dali. Ela continuou sentada na varanda até o dia começar a escurecer e, então, conseguiu ver perfeitamente o sol se pondo.
Ela acompanhou a grande estrela descendo no horizonte, sumindo junto com sua luz. Porque seus problemas não faziam o mesmo? Porque seus pais não faziam isso e sumiam de vez? Apesar de estar próximo do horário de pico, ela não escutava nenhum som nas ruas, apenas a culpa e a exaustão se repetindo milhões e milhões de vezes na sua cabeça.
A noite começou a se aproximar e o tempo esfriava. Ela tentava fumar o quarto cigarro daquele dia, mas o vento gélido já havia o apagado diversas vezes e ela não conseguia acendê-lo de jeito nenhum. Irritada, a garota desistiu e jogou o cigarro em direção à rua, o mais forte que conseguiu. O impulso a fez se desequilibrar e ela se segurou com força nas grades de ferro para não cair.
O barulho habitual das buzinas e discussões de trânsito ainda estava apenas começando. Estes sons já não a incomodavam mais, já havia se tornado um costume. Mas, na mesma hora, ela escutava seus pais começarem a gritar; não com ela, mas um com o outro. Cada palavra, alta demais, ecoava na cabeça dela e a impedia de tomar qualquer decisão. Já não era mais apenas seu pai e sua mãe, havia milhares de cada um deles, cada um gritando algo diferente, presos em suas próprias discussões. A quantidade de informações a impedia de pensar. Ela já estava farta de gritar para que eles parassem - um ato que não surtia efeito, apenas a fazia receber uma nova multa do prédio, que ela não conseguia pagar.
O cansaço tomava conta dela e ela tentava entender se era físico ou mental - ou ambos. Ela nunca soube como impedir seus pais de surgirem quando ela mais queria ficar sozinha. Sua cabeça começou a doer e ela quis apertar suas têmporas; foi só nesse momento que ela percebeu que continuava se segurando no ferro; a tensão a fez se segurar cada vez mais forte, até que suas mãos doessem. Ainda com medo de cair, tirou as mãos com cuidado e apertou sua cabeça com força.
Ela desejou com toda a sua energia para que ela voltasse a escutar os xingamentos dos motoristas, as brigas do casal do apartamento de cima ou o canto da velha senhora. Aqueles sons, que outrora chegaram a irritá-la tanto, agora eram seu maior desejo. Eram uma alternativa mais suave do que aquele tormento.
Ela se preparava para jogar algo naquelas imagens que se formavam por toda a casa e gritar para que elas sumissem, mas, na mesma hora, o silêncio tomou conta do ambiente. E, logo, este foi quebrado pelo toque da campainha. Talvez seu pai tivesse chegado do trabalho e esquecido as chaves em casa?
Com o fim daquilo que lhe causava angústia, ela passou a notar o quanto seu corpo estava gelado; o frio já havia se tornado tão intenso que ela não entendia como ainda não havia congelado. Fechou as portas de vidro com cuidado, amedrontada que qualquer barulho acordasse sua mãe e a irritasse, fazendo toda a briga recomeçar.
Ela abriu a porta e encontrou apenas um pote deixado no chão. A senhora do andar de baixo havia levado um pouco de comida para ela - "provavelmente preferiu deixar na porta para não ter que lidar mais com a minha loucura", a menina pensou antes de fechar a porta. Havia um pequeno bilhete pedindo para que a menina comesse e, mais uma vez, para que ela buscasse ajuda - quantas dessas sugestões ela já havia recebido de todos? Apenas isso nunca a ajudava, ela precisava de mais que isso - mas, na verdade, ela nem mesmo sabia do que precisava.
A bondade da idosa a surpreendeu novamente, mas seu peito doeu e ela quis que a mulher tivesse entrado para passar mais um tempo com ela. Seus pais não gostavam de visitas; as companhias sempre faziam eles se distanciarem e isso parava as brigas e os gritos - pelo menos por um tempo.
Enquanto comia, ela pensava no que ouviria da mãe se ela surgisse por ali. "Comendo comida dos outros? Aquela mulher não presta não. Como sabe que ela não deixou algo envenenado para você?". A garota gostaria que realmente estivesse; veneno não é um veneno se acabar se tornando uma solução.
Era confuso para ela o quanto cada segundo dentro daquela casa - a sua casa - fazia ela querer cada vez mais ir para casa. E ela nunca entendia qual lugar seu corpo queria levá-la realmente. Especialmente porque ela nunca se sentia em casa em nenhum lugar.
E mesmo odiando aquele lugar - que estava saturado de lembranças dos seus pais - já fazia semanas que ela não saía dali. Há tempos ela havia desistido de sair. Os olhares, os xingamentos e as reprovações, as diversas vezes que teve que dar explicações para policiais por receber denúncias de perturbação do sossego (e para quem ela denunciava a falta de sossego que havia em sua vida?). Ela se lembrava de todas as situações vergonhosas que passou por conta de seus pais.
Sua vida estava desmoronando fazia anos - desde que seus pais decidiram retornar para a vida dela. Ela sempre se questionava sobre o que ela precisava: solidão completa - incluindo de seus pais - ou a companhia de pessoas que a salvassem.
Ao acabar de comer, ela sorriu: amanhã, teria que descer para devolver o pote; uma desculpa oportuna para ter uma companhia. Ela desejou fazer isso agora mesmo, mas temia que a idosa já estivesse dormindo. Era madrugada e ela acreditava que era a única acordada.
Aquele era um breve momento de paz; ela deveria aproveitá-lo para conseguir dormir ou desfrutar daquilo que nunca tinha? Ela decidiu ir para a cama. Seus pais, como de costume, não desejaram boa noite para ela. Mas ela não se importou. Ela sabia que seria acordada amanhã por sua mãe e seu dia iria começar de novo. E tudo iria se repetir.
Ela não ouvia mais gritos ou qualquer voz. Sua mente era, agora, preenchida pa calma melodia de um violino - às vezes, aqueles sons a ajudavam a dormir. A música parecia vir de longe, mas ela sabia que era apenas fruto da sua cabeça, assim como todo o resto.
O som a acompanhou até que o sono a vencesse e ela adormeceu. Em seus sonhos, ela imaginava um mundo melhor, em que ela se sentisse bem. Um em que ela não precisaria parecer uma doida ou praticamente implorar por companhia ou ajuda. Um mundo em que seus pais ou qualquer outra imagem não existisse.

Um mundo que jamais existiria para ela.

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⏰ Última atualização: May 04, 2021 ⏰

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