Aquela história de calmaria antes da tempestade é a maior mentira que os ditos populares já me contaram. Se existisse, marinheiro nunca seria pego de surpresa.
Calmaria de verdade vem é depois da tempestade, da revolta, da depressão profunda, das ondas que viram barcos, da água salgada impossível de beber. Mas nem de longe significa que calmaria é céu limpo, sem risco de tempestade desabar, sem chance de furacão.
Quando vem depois da tempestade, calmaria é apatia. É continuar sem rumo, perdido no bote salva-vidas, boiando em mar aberto, sem saber exatamente quando um barco vai passar e resgatar. Se passar. Se resgatar.
Meus dedos correm pelas prateleiras extensas, algumas com camadas a mais de poeira do que outras, espaços vazios aqui e ali, o odor de papel antigo, o novo misturado ao pó e ao café que parece circular todas as fileiras.
Sigo pela textura, liso demais, detalhado demais. Parece suficientemente comum. Tiro o exemplar da prateleira e retorno para a mesa, no canto, com vista para todos os pedaços do lugar decorado sem um estilo propriamente dito. Como os porta-guardanapos com estampa vintage Coca-Cola, livros de capas sem nomes espalhados nas mais diferentes disposições e os candelabros de arabescos com velas de mentira pendendo do teto.
O mais importante mesmo é que, daqui, livro aberto na ponta da mesa e café fumegante sendo reposto mais rápido do que bebo, posso ver as ruas abarrotas de cinza esmaecido craquelado trançando de lado a outro, para inadiáveis conversas, encontros e tarefas. A vida é mesmo inadiável. Só que tenho sérias dúvidas de que qualquer deles está a se dirigir para viver mais um dia.
E a apatia é, sem dúvidas, o estágio mais sem vida, já que é desprovido de emoções. Não tem a bênção do desconhecido antes da tempestade ou o fulgor intenso do turbilhão de sentimentos durante a revolta. É simplesmente estático, parado, introvertido. É ser queimado pelo sol do meio dia e não se incomodar, mergulhar e não sentir a ausência do ar. Já não respira direito há tempos.
A fita poderia ser acelerada, como naqueles filmes em que procuram evidências de um crime, mas não será necessário parar, porque tudo se repete e repete, vem e vão, vão e vem em vão. E uma melancolia bonita parece surgir por um instante, mas é tão rápida que desfaz em fumaça que esfarela por entre os dedos.
– Mais café?
– A roda não para de girar, não é mesmo? – Esqueço por um instante que meu monólogo era apenas interno, e que a jovem que tem sempre um sorriso gratuito a oferecer não tem nada com meus problemas. Ou com minha apatia. – Claro, eu aceito, obrigada.
E os carros continuam a passar, as pessoas a caminhar, a chuva a cair, o vento a soprar, o bote à deriva em alto-mar, esperando pelo resgate.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Entrecontos Cotidianos
Short StoryCada capítulo, um conto. Cada capítulo um respiro, um gole de café, um pouco de fé. Em quê? Vai saber... Cada conto pingado de história de gente que não conheço, mas que entrou na cabeça e só sai de um jeito: na forma de palavras escritas-sentidas. ...