Aquela sensação voltou, o ar parecia fugir-lhe apenas por milímetros, parecia estar logo ali, era só respirá-lo, mas ao mesmo tempo era impossível. Olhar em volta era uma experiência no mínimo bizarra, o que era real misturava-se com o parecia não ser nada além de pequenas informações mal aglomeradas. Tentou dar um passo, mas os pés não se queriam mover, demorou, algo parecia resistir entre ela e o soalho de madeira escura e desgastada, algo até mórbido, que se estendia a uma distância tão curta.
No soar do nada, estava já no corredor, a longa reta até à próxima divisão. Deu um passo, outro, e logo após mais um, nunca havia reparado o universo que existe em cada fração de segundo, acabou por se sentir tonta, esticou o braço esquerdo, apoiando-se no nada, em reflexo esticou o braço direito, conseguindo agarrar a mesa de apoio em vidro, marcado por impressões digitais de mãos que nunca haviam tocado ali. O mundo parou de girar à sua frente, colocou a mão sobre uma das velas que repousava na mesa, estava apagada, mas de algum modo queimou-lhe as pontas dos dedos.
Subitamente a porta da cozinha estava logo ali, novamente havia percorrido uma distância sem sequer ter dado conta. Dobrou-se para passar a porta, estava escuro, demasiado, com a mão esquerda passou suavemente sobre a parede, procurando encontrar um interruptor, nada. Poderia jurar que sempre estivera ali, algo ali havia mudado. Deu um passo em direção à escuridão, tudo parece muito pior quando o que julga-mos saber desaparece da nossa realidade. Três passos, um súbito arrepio correu pela espinha, um vendaval para as proporções dadas, sentiu-se cair, e de repente tudo se foi.
Abriu os olhos, entendeu-se na realidade, conseguia agora ver um pouco mais claro sobre a área à sua volta, entendia como os pontos se ligavam na estante onde guardava os seus livros, não conseguia ler os seus títulos, procurou os seus óculos. A mão bambeava através da superfície da sua mesa de cabeceira, sem conseguir ver propriamente, utilizava o candeeiro como referência para se mover por entre os objetos, derrubou um copo, estilhaçando-o em mil pedaços, teria de se lembrar de sair pelo outro lado da cama, mas antes precisava de encontrar os óculos. Sentiu os dedos passarem sobre uma tesoura, quase que sentiu a pele ser cortada pelas pontas afiadas, o que estaria aquilo ali a fazer? Já haviam alguns meses, não teria voltado a cair no mesmo erro, certamente.
Esfregou os olhos, lentamente para não desfocar ainda mais a visão, inclinou-se para a direita para sair da cama, mas lembrou-se no último momento de se virar para a esquerda, evitando os vidros no chão. Depois de se levantar, ainda que sem se aperceber, começou a conseguir ter uma ligeira percepção dentro do escuro, não via nada, mas conseguia firmar um passo sem medo de errar ao assentar o pé, esses medos começavam a perder importância ao viver pela segunda vez.
Apercebeu-se de dar alguns passos, mas não os suficientes para se encontrar em frente da cozinha novamente, poderia a escuridão parecer menos...escura, apenas por se olhar para ela depois de já ter passado por ali? Bom, o interruptor continuava omisso, então, era hora de dar os mesmos passos, mesmo tendo agora entendido um pouco mais do motivo porque o faz. Desta vez conseguiu alcançar o balcão de mármore com uma das mãos, tentou adiantar-se um pouco mais, a confiança traiu-a, novamente o mesmo arrepio e novamente a queda, a proximidade ao chão parecia ainda maior agora, mas ainda se mantinha uma distância de mútuo respeito entre eles, por isso tudo se apagou antes que se pudessem encontrar.
Abriu os olhos, conferiu a estante, garantiu que ainda estava lá, porém parecia mais vazia agora. Atirou para trás os lençóis, e saiu pela esquerda, para evitar os vidros que já não estavam lá, mas sentia a necessidade de os evitar. Não precisou de coragem para passar pelo quarto, já conseguia ver alguns palmos na frente dos seus olhos, habituou-se a estar ali, seria bom? Certamente não para a sua visão, ligar a luz talvez fosse a solução mais simples, mas não encontrava os interruptores, talvez seria bom ter alguém para o fazer por ela, mas a invasão da luz provavelmente ia cegá-la, ou não estaria ela já cega?
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Flashlight
Mystery / ThrillerEla sente-se sozinha. O escuro é um amigo que já não via há anos mas voltou à sua vida. A hesitação torna-se o vértice extra neste triângulo. Ela pode ser muita coisa, ela podes ser tu.