Semideus

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Cláudio acordou, bocejou, afastou o sono dos olhos, calçou os chinelos e se espreguiçou, ainda sentado na beirada da cama. Passou um café e fumou um cigarro enquanto lia as primeiras notícias do dia, até que subitamente foi atingido por um daqueles momentos onde todas as peças se encaixam e aquela imagem disforme e confusa que tentamos formar sobre o que é a vida é tomada de uma assustadora nitidez.

Depois de terminar o café, Cláudio sabia que sua próxima tarefa seria matar seu vizinho. Na verdade, não importava muito quem fosse, contanto que fosse alguém. Seu vizinho, então, era a pessoa mais próxima naquele momento, logo, por uma questão de praticidade, seria ele esse alguém.

Naquela mesma noite, sonhou com Thor, o deus nórdico da tempestade, que voava pelo mundo tão rápido, mas tão rápido, que quando parou percebeu que tinha atropelado uma pessoa e segurava um coração sangrento, ainda pulsando, numa das mãos. Era esse o sonho. Thor voava, voava, voava, sentia cócegas no rosto e, quando enfim terminava seu passeio pelas dimensões, estava coberto de sangue e vísceras da cabeças aos pés, com um coração pulsante nas mãos. Não acontecia mais nada, era só isso. Voo, cócegas, coração. Todas as noites, pelos últimos seis meses.

Pela manhã, quando acordava, se perguntava: "por que aos deuses, e somente à eles, é reservado o direito de matar indiscriminadamente, enquanto que para o resto é reservado o dever de morrer?"

A pergunta sempre surgia pela manhã, quando as batidas ritmadas ficavam distantes e ele se dava conta que, durante todos seus anos de vida, nunca se fizera a questão mais importante: de que lado estava? Afinal, nunca matou ninguém, mas também continuava vivo.

"Então que sou?", se perguntava e a dúvida permanecia, às vezes durante todo o dia, e ele passava horas imaginando todos os tipos de situações, tentando se situar nos mais diferentes casos para, então, entender se era um deus ou apenas mais um mortal.

À essa pergunta restava apenas uma alternativa: matar seu vizinho. Se quando chegasse a hora, sua mão fraquejasse ou não conseguisse fazer o trabalho direito, Cláudio decidiu que desistiria. Mas e se não fraquejasse e ele conseguisse manejar bem a faca? Então mataria seu vizinho e teria a resposta final ao seu dilema.

Cláudio apagou o cigarro na caneca de café mesmo. Abriu a gaveta de talheres e pegou uma faca, a maior de todas que usava nos churrascos aos domingos na casa da mãe.

"É isso", pensou, segurando o cabo de madeira com uma mão. Percorrendo o gume com o polegar. "Rápido, prático e clássico".

Saiu do apartamento com a mesma calma que saía para comprar pão, tocou a campainha do vizinho e esperou. Do outro lado da porta ouviu os passos arrastados de alguém que ainda não tinha acordado por completo. Viu sob o vão a sombra se aproximar, então ouviu o molho de chaves. Nesse momento, Cláudio sabia que o vizinho o espiava pelo olho-mágico, então permaneceu imóvel com os braços para trás. A chave entrou na fechadura, girou uma, duas vezes com um clique metálico. A maçaneta deu uma leve inclinada e antes que o vizinho pudesse terminar de abrir a porta para receber seu vizinho, Cláudio entrou num rompante inesperado, derrubando-o ao chão.

Assustado, mal teve chance de entender o que acontecia quando Cláudio o apunhalou no peito repetidas vezes, manchando de vermelho seu pijama branco, cem por cento algodão.

Quando terminou, o vizinho já nem se mexia. Nem um espasmo sequer.

Cláudio permanecia tomado por uma inabalável calma.

"Isso vai ser noticiado", pensou olhando o corpo estirado no chão, então tornou a enfiar a faca no vizinho uma, duas, três, quinze vezes. "Homem é morto com quinze facadas em bairro nobre da cidade", imaginou a manchete e tornou a esfaqueá-lo.

"Certo, certo...", bufava, coberto de sangue dos pés a cabeça, "sessenta e seis é um bom núme..."

— Sessenta e sete — disse em voz baixa e cravou a faca uma última vez.

Olhando o corpo ensanguentado, Cláudio chegou a uma nova conclusão, essa, talvez, muito mais assustadora do que a primeira que o levou às vias de fato. Cláudio tinha agora o controle absoluto de sua vida e história. Quando a notícia fosse divulgada nos jornais, ele deveria estar preso. "Mas até lá", pensou, visualizando mais uma vez aquela nítida imagem que vislumbrara mais cedo, "posso fazer o que quiser".

Voltou ao seu apartamento e fechou a porta, suas mãos não tremiam e ele ainda estava com fome. Foi até a cozinha e, só então, quando parou para abrir a geladeira, notou que ainda segurava a faca. Jogou na pia, limpou as mãos o melhor que pôde num pijama igualmente emporcalhado e abriu a geladeira.

"Leite, ovos, manteiga...", virou-se para o armário, carregado com os alimentos, que despejou cuidadosamente sobre a pia. "Sal, pimenta...", parou, olhou novamente para a geladeira. Abriu a porta e ficou observando seu conteúdo fresco e iluminado durante algum tempo, então agarrou um tomate e uma bandeja com presunto fatiado. Pegou uma frigideira, colocou-a no fogo com uma colher de manteiga, que imediatamente começou a derreter. Quebrou os ovos num liquidificador, despejou um pouco de leite e acrescentou sal, pimenta, presunto e tomate picados. Bateu tudo e despejou sobre a manteiga líquida num tom dourado que exalava um aroma delicioso. Preparou seu omelete em silêncio.

Quando ficou pronto, sentou-se à mesa com um garfo e uma nova xícara de café. Dessa vez, enquanto comia sua refeição, Cláudio não conseguiu conter o riso quando ligou o celular e se deparou com um novo meme.

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