Pregar os olhos era difícil mesmo com o sono acumulado. Uma onda de ansiedade quebrava contra o peito ao cair da lua e as estrelas traziam os piores temores de Antônio para dentro da cabeça, aqueles demônios personificados na fatura vencida do cartão de crédito ou na prestação atrasada do apartamento. A escassez de dinheiro angustiava o pai que temia não conseguir tomar conta do filho muito em breve.
Antônio afligia-se com a situação e pensava em como aumentar sua renda quando a porta do quarto se abriu.
Passos rítmicos de uma corridinha descalça ecoaram pelo silêncio da noite e em questão de segundos, o menino pulou sobre a cama, esgueirando-se para baixo do edredom paterno.
Antônio esqueceu os problemas e passou o braço ao redor do filho, tinha toda a felicidade que necessitava ao seu alcance.
- O Dênis não me deixa dormir - disse o menino. - Posso ficar aqui com você?
- Claro que pode ficar com o pai. Mas, Gael, gente precisa ver essa coisa do Dênis. Eu... Fico preocupado.
- Não é coisa, pai. É só o Dênis. Ele aparece pra conversar comigo quando se sente sozinho.
- Eu não gosto muito dessa conversa de amigo secreto, filho. O que sua mãe diz sobre o Dênis? - Antônio sentou-se na cama.
-Não é secreto, pai. A mãe diz que o Dênis é um amigo imaginário, mas ela tá errada.
Antônio afagou os cabelos de Gael, beijou-o na bochecha e ajeitou o edredom sobre o garoto.
- Dênis... - Antônio repetiu de modo vago. Ficava constrangido ao conversar sobre o amigo imaginário do filho. - Durma, carinha. Amanhã eu falo sobre o assunto com sua mãe. Quer ouvir uma história para dormir?
- Quero!
Antônio então contou uma aventura sobre dois amigos que descobriam tesouros numa caverna, mas o sono envolveu o homem antes que concluísse a contação.
Gael ficou acordado, imóvel no breu do quarto, quando a história foi trocada pelo ronco do pai.
O menino cobriu o rosto com o edredom, mas não pregou os olhos. Só queria não ver a coisa que o espreitava acocorada em cima do guarda roupas. Dênis tinha descrito a criatura como uma silhueta humana mas feita de trevas cujos chifres pareciam ter sido dobrados para frente.
- Se eu aparecer de novo por aqui, a coisa vai me pegar, depois ela vai punir você - alertara Dênis. - Então, não posso ficar aqui nesta noite. Durma com o seu pai hoje.
Gael suspirou. O monstro era apenas uma parte da imaginação, assim como o amigo Dênis, que desaparecia conforme se esforçava para expulsa-lo. Segurando o fôlego, descobriu os olhos e encarou a coisa estática pelo máximo de tempo que pôde. Ao invés de sumir, ela sorriu para Gael.
Na manhã seguinte, Antônio acordou o filho, apressando-o. Estavam atrasados para a escola. Eles tomaram um rápido desjejum e partiram sem trocar muitas palavras. Antônio não percebeu o silêncio nem a falta de apetite do filho, pois a cabeça se voltava para a entrevista que faria naquele dia, uma oportunidade de ganhar mais dinheiro. Então não notou que o silêncio de Gael era onde ocorria uma luta interna para ver quem dominaria seu corpo: o próprio menino ou a coisa da noite anterior.
Na terceira aula, Gael cochilou por alguns instantes, sendo acordado pelo berro furioso da professora.
Primeiro, o garoto se desculpou; em seguida, falou as palavras que o levariam para a diretoria:
- Por que a senhora não lava a boceta com querosene e enfia um vibrador pegando fogo nela ao invés de encher a porra do meu saco?
- Arrume as suas coisas agora! - ordenou a professora.
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O Silêncio de Gael
HorrorGael não consegue dormir. O que será que há no escuro de seu quarto?