Flash Fiction: Recursos Desumanos

2 0 0
                                    

O e-mail foi bem claro: oito em ponto no Island Center, no Renascença. Jackson desceu na frente do Hospital Carlos Macieira, contando um passo após o outro ao atravessar pela faixa de pedestres, subir o meio-fio. Abria caminho pelo mar de gente apressada e de carros desordenados, e abria também em suas cutículas - havia sangue seco nas bordas das unhas do tanto que havia roído. O peito pesado em compasso às passadas batia ritmado com a pressa.

Chegou na recepção do centro comercial e se apresentou como um dos candidatos da seletiva. As funcionárias de olhar enviesado o tomaram de cima a baixo. Ele se sentiu sujo, corrigiu os botões da camisa, ajeitou a gola e alinhou os cabelos. Percebeu que era apenas desdém - não entendia o porquê do proletário tratar um semelhante com desdém, se todos pagavam os mesmos boletos, e sofriam da mesma dificuldade em pagá-los.

Jackson recebeu um crachá de visitante, passou pelo segurança, tomando o rumo do elevador e, a seguir, o oitavo andar. Enquanto subia, repassava na mente todas as frases prontas, gestos tétricos e respostas imaginativas dos vídeos de capacitação do Sebrae. Sabia que uma palavra errada poderia derrubar uma oportunidade de emprego.

Os pés conduziram seu corpo para a sala com a inscrição 818 na porta; mais abaixo, o logotipo da Agência Esparta.

A porta automática deslizou para a esquerda, liberando espaço para Jackson se acomodar na recepção. Divididos pelos sofás e cadeiras, quatro concorrentes aguardavam. Jackson enfiou o dedo na boca e arrancou o último naco de cutícula ao ver os trajes, a maquiagem, os cabelos em gel e os olhos duros por trás das lentes antirreflexo de cada uma.

Havia uma moça de cabelos loiros com olhos tão frios quanto de um predador, perdendo apenas para os rincões agressivos no rosto de um senhor com cabelos grisalhos encarando o retardatário. Uma moça muito jovem de tailleur escuro mexia ao celular. Sentado em uma cadeira, um rapaz musculoso de terno escaneava Jackson do rosto aos sapatos.

Para Jackson, não haveria como concorrer com eles, pessoas bem dispostas, com a vitória refletindo na ação e nos pensamentos. Exalavam vitória, enquanto ele, metido em uma camisa puída, que mal sabia conjugar os verbos e mentira de forma assombrosa no currículo, não seria páreo. Era um pangaré correndo contra puros-sangues.

Só quando a porta do corredor à esquerda se abriu, foi que Jackson se deu conta da ausência de recepção: era uma saleta comum para receber os visitantes, mas sem mesa de atendimento.

Da porta, uma mocinha de vestido escuro usando luvas de crochê também de cores mortas pediu para os candidatos entrarem. Todos seguiram em fila para o local indicado. O ambiente seguinte parecia muito maior que o tamanho normal das outras salas comerciais. Inclusive, a extensão do teto. Era desproporcional, como se fosse uma quadra poliesportiva de colégio. Uma escada conduzia para uma plataforma a metros de distância abaixo do piso, ao passo que figuras usando máscaras de gás, equipamentos de segurança e luvas negras se espalhavam em seis pontos da área. O coração de Jackson batia irregular, exalando dos poros um suor tão frio que encrespava sua espinha.

Um homem de terno escuro com um cravo na lapela usando as mesmas luvas de crochê delicadas recebia os concorrentes:

"Não se assustem com o tamanho do nosso empreendimento", disse ele. "Nós compramos os andares deste bloco e quebramos umas paredes e o assoalho. Tudo nos pertence."

A loira já não parecia tão segura de si, nem o musculoso visualizava mais o ambiente como se o mundo fosse seu.

"Essa vaga é para apenas um candidato. Quem sobreviver a ela, entrará para o nosso time."

Jackson inclinou a cabeça para ouvir melhor. Entendeu, sim, a mensagem do entrevistador, só recusava-se a entender. Ouviu alto e bem claro sobreviver.

A recepcionista surgiu no alto da plataforma e jogou o que pareciam lanças na direção do quinteto. Na ponta dos objetos, as lâminas brilhavam de tão afiadas.

"Sem dor, não há vitória", o estranho ia devagar para fora da arena. "A Agência Esparta deseja a vocês uma boa sorte".

A mocinha gritou desesperada. O senhor gritava por se tratar de uma anormalidade, bradava por seus direitos, xingou. Ele ameaçou sair. Um dos sentinelas à noroeste sacou uma pistola, disparando um cabo de aço preso a um gancho com quatro pontas, acertando a coxa do dissidente - fisgado como peixes, ele fora arrastado pelo gancho de volta à quadra. O mesmo se deu com a jovem em histeria. Dois sentinelas atiraram contra ela, um gancho para o pescoço, outro para a perna direita. Um rastro vermelho vívido acompanhou seu trajeto.

O musculoso agiu por impulso, sem cor alguma no rosto. Empunhou a lança do chão e acertou o rosto da loira, que caiu com uma lasca da bochecha aberta, vazando sangue. Correu até Jackson. O retardatário bateu em retirada, com as pernas falhando, capturado pelo brutamontes ao agarrar seus cabelos encaracolados.

Ele tentou empalar Jackson, porém, a ação morreu no último instante. A mocinha com um gancho no pescoço se ergueu e varou o concorrente com a lança.

"Essa vaga é minha!", gritou ela.

A luta seria fácil para o musculoso, não fosse a ação providencial de Jackson. A mais jovem empalou a barriga do atacante, enquanto Jackson metia a lança nas costas dele. A seus pés, a loira se debatia em choque.

O senhor recolheu sua arma e varou o calcanhar da mocinha, se abrindo como uma fruta podre.

"Eu sou melhor que vocês...", sussurrou o candidato de mais idade. E fincara a lança no coração da última moça.

Restavam Jackson e o outro remanescente. Jackson implorava para o homem manter distância. Dizia que isso não valia a pena, que não contaria nada a polícia. O senhor só comentava suas qualidades, que estudou Economia na UFMA, sua pós em Administração, a nota máxima no Mestrado. Tinha visão de futuro e arrancaria a cabeça de qualquer um. Enquanto falava, não notou a poça viscosa da mulher loira e escorregou, caindo de testa no chão.

Demorou segundos valiosos para se virar. Quando abrira os olhos, viu Jackson com a lança em sua direção, mas segurando-a tal qual uma barra. Jackson comprimiu a glote do senhor com o ferro, imprimindo tanta força a ponto de interromper o ar. Depois de um som molhado de crec, o candidato sobrevivente abrira os olhos: seu concorrente morreu com a garganta mole e a pele roxa sem oxigenação.

Jackson se jogou para o lado e desfez o rosto gritos e lágrimas. Não reconheceu se lutou para sobreviver ou para vencer; não se reconhecia agora, ou talvez, nunca soubesse disso.

Os guardas nas alturas batiam palmas, seguidos pelo entrevistador e a recepcionista, que ressurgiram na porta.

"Parabéns, candidato", felicitou o enluvado. "Você se saiu muito bem. Vai ganhar um bônus pela criatividade ao usar a lança."

Jackson limpou o sangue da calça.

"Quem será o meu... empregador?"

A recepcionista puxou um cartão e entregou ao vencedor. Ele vomitou ao saber quem assinaria seus cheques todos os meses. Nunca imaginara que seu serviço de streaming favorito empregasse tais métodos para selecionar seus colaboradores.

"É por isso que ninguém fica tanto tempo nessa empresa...", lamentou Jackson, limpando a boca na manga da camisa.

Mapa do Escritor: MinicontosOnde histórias criam vida. Descubra agora