Antes, na cidade--

491 13 4
                                    

        - Era ele de novo? - perguntou Glória aflita, ao ver Rubens bater o telefone, depois de berrar meia duzia de palavrões para a pessoa do outro lado da linha. A pergunta era totalmente ociosa. Glória sabia que era ele. Nem precisava ter assistido à cena. Bastaria ver o rosto transtornado do marido, que nem falar conseguia de tanta fúria.

        Ainda ofegante, com os punhos e os dentes crispados, como se quisesse ou atacar alguém (ele) a dentadas ou derrubá-lo a muros, Rubens foi até a geladeira, escancarou-a, tirou a garrafa de água e encheu um dos copos em cima da mesa.

        -Devagar, Rubens! - pediu Glória. O marido sorvia a água num gole único, sem parar pra respirar, chegando a deixá-la escorrer pelos cantos da boca. Finalmente, engasgou-se e começou a tossir. Glória correu para junto dele e o puxou pelo braço, fazendo-o sentar-se numa das cadeiras da copa.

        -Só matando! - grunhiu, enfim, Rubens, quando conseguiu se recuperar.

        -Era ele? - Glória repetiu a pergunta, quando na verdade o que queria perguntar era se havia alguma chance de ele descobrir onde Crica estava.

        O marido ainda uma vez não ocnfirmou quem era, ao telefone. Ficou olhando para a mulher, desconsolado, sem saber o que fazer... E repitiu:

        -Só matando aquele moleque! Aquele...

        Glória começou a chorar de nervoso. Rubens a puxou contra si e os dois ficaram abraçados em silêncio por alguns instantes, até que ele afastou-a um pouco para olhá-la bem dentro dos olhos, e disse, com uma expressão de alívio:

        -Ele não sabe onde nossa filha está! Pelo menos isso.

        -Mas o que ele quer da Crica? Depois de tudo que fez ela passar!

        -Não sabe, nem vai saber nunca - e Rubens começava a se irritar de novo. - Foi uma felicidade minha mãe convidar Crica para ir ao sítio. Ela já tinha mesmo perdido o ano na escola, então ia ficar fazendo o quê por aqui? Acabava esquecendo o que esse cretinozinho fez? A Crica pode ter contado a ele alguma coisa sobre o sítio...

        Rubens levantou-se da cadeira, deu alguns passos pela cozinha, preocupado...

        -Acho que não, acho que não- depois esfregou com força o rosto, como se quisesse despertar o raciocínio. - Fazia anos que ela não ia para lá, nunca mais falou a respeito... Ela não levou o celular, levou? Não, eu o vi em cima da mesinha, lá no quarto. A Crica está segura no sítio... - Ele hesitou antes de completar: - Mas bem que eu preferia que estivesse aqui, junto da gente! Acho que a gente poderia cuidar melhor dela. Minha mãe...

        -Rubens! - murmurou Glória, e o marido entendeu o que a esposa lhe dizia. Não, eles não estavam conseguindo "cuidar dela"...

        -Sei que você e sua mãe não se dão bem, mas neste momento, por favor, esqueça isso!

        -A gente se dá muito bem sim. Ela lá, eu cá, desde que ela largou meu pai para ficar com aquele... aquele tal de Jonas. Olha que quando o sujeito morreu naquele desastre de helicóptero, oito anos atrás, quase que eu... comemorei!

        -Rubens... - chamou-o Glória e novo, e mais uma vez havia uma mensagem subentendida entre ambos: era preciso que se concentrassem no problema atual. - A separação os seus pais foi quase há quarenta anos. A Crica...

        -Tá bem, tá bem! - Rubens olhou em volta, como se as lembranças estivessem mais vizíveis do que as paredes da cozinha...

        -Crica aqui, ficava trancada no quarto o dia inteiro - interrompeu Glória, com a voz rouca, sem conseguir mais se conter. - Nem pensei que fosse aceitar o convite da avó. Chegou na hora certa... Eu...Rubens...Meu Deus, Rubens!

        O marido voltou-se para ela. Os lábios da mulher tremiam, Gloria chorava ainda mais forte. Rubens sentiu que ela estava pedindo que ele a abraçasse novamente. Correu para ela e amparou-a o mais firmemente que pôde. Glória ainda deixou escapar como num suspiro:

        -Eu não sabia mais como fazer... como ajudar minha filha... eu não sabia. Ela estava tão triste, tão... Fiquei com medo de que ela... Você também não teve medo de que ela...?

        Rubens apertou-a nos braços com mais força ainda. Ela correspondeu ao abraço, e os dois foram se serenando aos poucos, colados um ao outro.

Corações PartidosOnde histórias criam vida. Descubra agora